me sinto enjoado com todos os apagões recentes. ao acordar, levo a mão instintivamente ‘a testa e não descubro sangue, apesar de ter a impressão de ter sido atingido pelo tiro ou de pelo menos ter dado com a cabeça na quina da mesa de escritório em que trabalho.
bel não está em nenhum lugar em que se possa ver.
ao invés dele, a pessoa que parece ter aberto a porta e agora se inclina sobre mim. visão levemente desfocada, o bastante pra não distinguir sequer o sexo de quem está tão perto.
"Amélia?" murmuro.
"Se liga, Bono!" lúcio diz com um sorriso cínico brincando nos lábios."Que porra aconteceu aqui, afinal?" ele complementa.
não sei por onde começar, então jogo a isca.
"Você sabe tanto quanto eu."
"Quem quer te matar dessa vez?" repete o sorriso. "Porque, verdade seja dita, acabei de ouvir um tiro e ele veio daqui de dentro. Só que não pode ser tentativa de suicídio. A arma tá do outro lado do escritório. Então, quem foi?"
"De verdade? Não tenho idéia."
me pergunto porque não falo a respeito de bel. lúcio deve conhecê-lo. mas de repente parece ser boa idéia guardar isso pra mim. é minha masculinidade que está em risco aqui.
"Vim porque consegui informação fresca sobre o ‘item em questão’."
"Tão rápido?"
"Tenho meus meios."
sei que ele quer que pergunte quais são os meios, mas não estou no mood de ouvir as altas especulações metafísicas de que lúcio é capaz quando se põe pilha nele. então me calo novamente.
"Vem comigo." ele diz, e vou, fazer o quê?!
passamos no chico, pego um cachorro com tudo em cima e lúcio também. do outro lado da calçada, vindo em direção ao prédio onde fica o escritório, vejo uma mulher de roupa justa que, por minha experiência, deve ser uma freira. mas não é amélia. parafraseando mário lago, "ela é que é".
"Será que essa tentativa de te matar tem a ver com o fato do teu escritório aparecer regularmente revirado, Bono?"
"Acho que não. Me disseram que o lugar tá assombrado."
"Hm. Isso me interessa. Pensei que cê não fosse aventar essa possibilidade nunca, distraído como é."
"E o que cê quer dizer com isso, Lúcio?"
"Ué, que cê não presta atenção em porra nenhuma do que acontece ao teu redor. Que vive mais dentro da própria cabeça que no mundo que te cerca… coisas assim, gerais, nada específico."
atravessamos o boulevard em direção ao porto, passamos por lojas de todo tipo, inclusive uma que vende material pra construção… da vitrine, um jogo de martelos posa ameaçadoramente. mas não paramos, seguimos em frente até um atracadouro vazio.
"Jogaram o prego aqui." ele diz.
tento lembrar de que prego ele está falando. enquanto não consigo, enrolo o quanto posso. não quero mais ouvir esse papinho de que sou distraído tão cedo.
"E a marreta?"
"A marreta é parte do conjunto, certo? Junto com ela os ciganos levaram o quarto prego. Pois é, disse antes e repito agora, conheço essa história já faz um tempo. E quem roubou um, roubou o outro também. O prego, ou cravo, se preferir, foi jogado aqui, ainda deve estar no fundo se não tiver nenhuma corrente submarina muito forte."
tento entender porque alguém roubaria uma relíquia com o objetivo de se livrar dela jogando no mar. não consigo, falho.
"Melhor a fazer agora é procurar aquele ‘elo mais fraco’ de que falei."
"Celso Fontoura."
"Celso Fontoura."
por razão que desconheço a figura que aparece em minha mente não é a de um acólito em uma seita secreta de milhares de anos. na minha opinião profissional, que lúcio parece disposto a ignorar com todas as forças, isso parece mais do que nunca trabalho de amador. alguém que aproveita a oportunidade. como naquele ditado das antigas: ‘a ocasião faz o ladrão’."
lúcio diz que vai providenciar o resgate do prego com alguém que ele chama de ‘mosca’. não seria melhor que a pessoa fosse pelo menos um anfíbio? ‘rã’, por exemplo? saímos rápido do atracadouro.
o taxista age como motorista particular de lúcio.
"Pra onde agora?"
"Siga seus instintos", lúcio responde e me pergunto que raios quer dizer com isso.
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