Arquivo para setembro \29\+00:00 2006

29
set
06

15.

me sinto enjoado com todos os apagões recentes. ao acordar, levo a mão instintivamente ‘a testa e não descubro sangue, apesar de ter a impressão de ter sido atingido pelo tiro ou de pelo menos ter dado com a cabeça na quina da mesa de escritório em que trabalho.

bel não está em nenhum lugar em que se possa ver.

ao invés dele, a pessoa que parece ter aberto a porta e agora se inclina sobre mim. visão levemente desfocada, o bastante pra não distinguir sequer o sexo de quem está tão perto.

"Amélia?" murmuro.

"Se liga, Bono!" lúcio diz com um sorriso cínico brincando nos lábios."Que porra aconteceu aqui, afinal?" ele complementa.

não sei por onde começar, então jogo a isca.

"Você sabe tanto quanto eu."

"Quem quer te matar dessa vez?" repete o sorriso. "Porque, verdade seja dita, acabei de ouvir um tiro e ele veio daqui de dentro. Só que não pode ser tentativa de suicídio. A arma tá do outro lado do escritório. Então, quem foi?"

"De verdade? Não tenho idéia."

me pergunto porque não falo a respeito de bel. lúcio deve conhecê-lo. mas de repente parece ser boa idéia guardar isso pra mim. é minha masculinidade que está em risco aqui.

"Vim porque consegui informação fresca sobre o ‘item em questão’."

"Tão rápido?"

"Tenho meus meios."

sei que ele quer que pergunte quais são os meios, mas não estou no mood de ouvir as altas especulações metafísicas de que lúcio é capaz quando se põe pilha nele. então me calo novamente.

"Vem comigo." ele diz, e vou, fazer o quê?!

passamos no chico, pego um cachorro com tudo em cima e lúcio também. do outro lado da calçada, vindo em direção ao prédio onde fica o escritório, vejo uma mulher de roupa justa que, por minha experiência, deve ser uma freira. mas não é amélia. parafraseando mário lago, "ela é que é".

"Será que essa tentativa de te matar tem a ver com o fato do teu escritório aparecer regularmente revirado, Bono?"

"Acho que não. Me disseram que o lugar tá assombrado."

"Hm. Isso me interessa. Pensei que cê não fosse aventar essa possibilidade nunca, distraído como é."

"E o que cê quer dizer com isso, Lúcio?"

"Ué, que cê não presta atenção em porra nenhuma do que acontece ao teu redor. Que vive mais dentro da própria cabeça que no mundo que te cerca… coisas assim, gerais, nada específico."

atravessamos o boulevard em direção ao porto, passamos por lojas de todo tipo, inclusive uma que vende material pra construção… da vitrine, um jogo de martelos posa ameaçadoramente. mas não paramos, seguimos em frente até um atracadouro vazio.

"Jogaram o prego aqui." ele diz.

tento lembrar de que prego ele está falando. enquanto não consigo, enrolo o quanto posso. não quero mais ouvir esse papinho de que sou distraído tão cedo.

"E a marreta?"

"A marreta é parte do conjunto, certo? Junto com ela os ciganos levaram o quarto prego. Pois é, disse antes e repito agora, conheço essa história já faz um tempo. E quem roubou um, roubou o outro também. O prego, ou cravo, se preferir, foi jogado aqui, ainda deve estar no fundo se não tiver nenhuma corrente submarina muito forte."

tento entender porque alguém roubaria uma relíquia com o objetivo de se livrar dela jogando no mar. não consigo, falho.

"Melhor a fazer agora é procurar aquele ‘elo mais fraco’ de que falei."

"Celso Fontoura."

"Celso Fontoura."

por razão que desconheço a figura que aparece em minha mente não é a de um acólito em uma seita secreta de milhares de anos. na minha opinião profissional, que lúcio parece disposto a ignorar com todas as forças, isso parece mais do que nunca trabalho de amador. alguém que aproveita a oportunidade. como naquele ditado das antigas: ‘a ocasião faz o ladrão’."

lúcio diz que vai providenciar o resgate do prego com alguém que ele chama de ‘mosca’. não seria melhor que a pessoa fosse pelo menos um anfíbio? ‘rã’, por exemplo? saímos rápido do atracadouro.

o taxista age como motorista particular de lúcio.

"Pra onde agora?"

"Siga seus instintos", lúcio responde e me pergunto que raios quer dizer com isso.

26
set
06

14.

ingerir café com leite, pão e manteiga, uma ou duas frutas me ajuda a readquirir o foco perdido.

caminho até o escritório. abro a gaveta onde costumo deixar a arma e, é claro, acontece de novo. ela esteve no coldre de ombro o tempo todo. me pergunto como não percebi isso, como ignorei o peso extra em meu corpo capaz até de afetar o equilíbrio de alguém não acostumado e isso me dá a resposta. hábito. que, é evidente, me faz lembrar de amélia.

preciso voltar a vê-la o quanto antes. preciso de um método qualquer pra encontrá-la. ir novamente ao templo da ordem parece estar fora de cogitação por conta do muro que os outros noviços representam. preciso dela o quanto antes, não pra ajudar na investigação, já quase esquecida, mas pra meus fins egoístas. tenho a sensação de que comunicar o que descobri até agora pode ser a chave de seu cinto de castidade.

**********************************************************************************************

desta vez acordo sem dor de cabeça, com o estômago roncando saudavelmente e disposto a achar amélia a qualquer custo. há necessidades que não podem ser ignoradas.

esfrego os olhos, me livro da remela e percebo a sombra sentada no lado oposto do escritório, me observando com atenção crescente. levo a mão ao coldre, esperando sentir a segurança que a madeira da empunhadura da arma pode trazer.

mas ela não está lá.

"Procurando por isso?"

ele sussurra, da escuridão e, mais uma vez, sinto os pêlos em minha nuca desejarem não estar lá. em sua mão grande, de unhas longas, minha arma. um feixe de luz incide no cano niquelado, produzindo o efeito que meu antagonista deseja. não o reconheço, não lembro dele. só sinto um inevitável cheiro de queimado e pressinto que ele esteve em meus sonhos no hotel.

"Então, veio terminar o que começou no FlorAmor, sr…?" consigo murmurar.

ele ouve. conta cinco segundos e responde.

"Bel. Pode me chamar de Bel."

"Como em Isabel?"

"Rá! Bem que Vladimir disse que o sr. era metido a engraçadinho. Observe: estou rolando de rir."

ele mal se move.

"Muito bem, sr. Bel. O que deseja? Além de me ofender, invadir meu escritório e roubar minha arma, quero dizer."

"Você chama isso de escritório, sr. Profit? Se pretende continuar trabalhando aqui e nesse ramo poderia recorrer a algum exorcista. Mas teria que ser dos bons. O lugar obviamente está possuído."

"Você quis dizer ‘assombrado’, não?"

"Não."

mais silêncio. ele é do tipo que acha que grandes pausas dramáticas podem assustar o interlocutor. vou te contar: comigo funciona sempre. preciso mesmo estar falando qualquer besteira pra me sentir seguro. como num filme de woody allen, em que as personagens, diferente do que acontece na vida real, falam tudo que lhes dá na telha.

"Sr.Bel, ainda não disse o que veio fazer aqui…"

"Quero saber de suas intenções, sr. Profit."

"Com relação ‘a marreta?"

"Perdão, que marreta?"

"Bom, melhor esquecer que perguntei. Que intenções?"

"O que o sr. pretendia quando passou a mão em mim?"

"Olha, eu estava de porre, totalmente bêbado. Não lembro de ter passado a mão em ninguém e, se passei, foi sem querer."

"Tenho certeza de que pelo menos essa parte do ‘sem querer’ não é verdadeira. Você parecia saber perfeitamente o que fazer pra ter sido só um esbarrão."

"Mas estava praticamente inconsciente!"

"Talvez isso explique parte do ocorrido. É difícil me tocar sem que eu deseje, é difícil me pegar distraído o bastante pra isso."

ele está me perdendo rapidamente conforme a conversa fica mais e mais ininteligível.

"Vim aqui porque, apesar de minha reação inicial ter sido agressiva, confesso que gostei de ser tocado por você. Daí a pergunta: quais suas intenções?"

"Talvez… olha, sr. Bel, foi tudo um mal-entendido e me desculpo por isso. Infelizmente eu não estava no controle de minhas ações…" e prossigo com esse discurso respeitoso quanto ‘a sexualidade dele por mais um ou dois minutos mas não prestando atenção, de fato, ao que estou dizendo.

"Então o sr. não está interessado em mim?"

"Lamento, sr. Bel. Sou hetero."

"Não devia mexer com os sentimentos dos outros desse jeito, sr. Profit. Pode haver retaliações."

então ele faz algo realmente assustador: empunha a arma, apontando-a em minha direção. depois, começa a pressionar o gatilho devagar, devagar… estou quase urinando nas calças quando a porta abre de súbito e Bel desaparece, deixando a arma cair, batendo no chão e disparando, quase magicamente, em minha direção.

apago, mais uma vez.

23
set
06

13.

vladimir tentou explicar que o lugar onde havia ocorrido meu acidente gastro-intestinal (lembro de amélia ao pensar nisso) não era seu escritório, mas outra coisa. lúcio sussurrou no ouvido dele alto o bastante pra que eu ouvisse. "Isso é sinistro demais e Lucas ingênuo demais".

eles parecem estar acertando as contas enquanto marco passo do lado de fora do verdadeiro escritório de vladimir. lúcio vem em minha direção. gesticula com as mãos pra que eu comece a andar e é o que faço. vladimir parece estar muito puto com o incidente.

pena não ter encontrado uma libertina que, bom, me libertasse dos fluídos sexuais que ameaçam subir ‘a cabeça desde que conheci minha noviça… teria sido divertido. mas pensando melhor a respeito decido que não seria uma experiência legal pra nenhum de nós (eu e minha hipotética parceira) se as revoluções estomacais acontecessem durante o intercurso. já ouvi falar de coprofagia, de quem curte a boa e velha "ducha dourada", mas não tenho certeza se há ou não alguma perversão envolvendo vômito.

tento dizer a lúcio que preciso ir ao escritório apanhar minha arma e fazer uma visita rápida a celso fontoura, mas ele já se antecipou a mim e sugere que eu vá pra um hotel qualquer passar a noite. meio a contragosto (pero-no-mucho) aceito a sugestão. lúcio parece disposto a esticar a noite por mais uma ou duas horas. são três da madrugada quando nos separamos e não posso deixar de ter a impressão de estar sendo seguido por parte do caminho.

no hotel descubro que torrei quase todo o dinheiro recebido como adiantamento pela investigação. toda aquela bateção de perna pra encontrar o modelo mais acessível de laptop de ontem foi em vão. certo que a grana daria só pra entrada e uma ou duas parcelas, mas já era um começo e, agora, me vi reduzido a voltar pra antes do começo.

retrocesso.

o quarto é um retângulo de pouco mais de dois metros de cumprimento por um e meio de largura. tem espaço o bastante pra ficar deitado na cama, levantar e sair. a economia espacial é tanta que a porta abre pra fora. o banheiro é um urinol. se quiser sentar no vaso tenho que andar corredor abaixo até a "casinha" oficial, com vaso sanitário, água corrente e outros luxos impossíveis fisicamente no dormitório cubiculoso.

só de cuecas me estico na cama. está quente o bastante pra usar até menos roupa. fecho os olhos e penso em imagens agradáveis na tentativa de induzir um sono sem agitação ou pesadelos.

vejo carneirinhos correndo pelo campo, pulando a cerca. quando o último deles salta percebo que é alvo da perseguição de uma criatura sinistra que sacudo, imediatamente, pra longe de minha atenção.

respiro fundo, tento me acalmar, mas não consigo evitar a lembrança de ter ouvido, na conversa entre lúcio e vladimir, a palavra "demônio". não me assusto fácil, ainda mais quando sei que coisas assim não existem, que não passam de mitos. a imagem que se formou voluntariamente enquanto contava carneiros, no entanto, tinha todas as características físicas atribuídas a esse tipo de criatura que usava, ainda, os óculos de casco de tartaruga de celso fontoura. cascos fendidos, chifres e todo o resto. no olhar a intenção de fazer aos pobres animais lanosos o que fez a mim em outra vida.

apaguei por doze horas inteiras e acordo sem recordar direito quem sou, onde estou, minhas senhas pessoais e todo o resto. não importa. a dor de cabeça que me lembra do abuso ao fígado indica que preciso ingerir qualquer coisa pra reestabelecer o equilíbrio de açúcar no meu sangue.

21
set
06

12.

ação e reação. terceira lei de newton? quinta? existe uma quinta lei de newton?

uma cortina negra desce lentamente sobre meus olhos. ouço a voz de lúcio, bem distante, dizendo coisas que não entendo. ouço vladimir gritando. sons de coisas se quebrando. e então o silêncio, só o silêncio.

acordo, não sei exatamente quanto tempo depois, num sofá numa dependência nos fundos do floramor. vladimir e lúcio estão discutindo sobre algo, mas meus sentidos estão confusos demais para captarem algum fragmento inteligível da conversa – muito rápida e cheia de palavras estranhas – da qual só entendo "demônio". quando me sento, sinto como se minha cabeça tivesse se desprendido do pescoço e começado a rolar até a porta. a sala gira e está cheia de luzes estranhas. sinto vontade de chorar, mas me encosto na poltrona e espero que os efeitos da cerveja passem logo. há muito tempo não tomava um porre assim. minutos (?) depois, a mobília pára de se mover, deixo de ver cores que não conhecia e consigo encadear dois pensamentos lógicos com um pouco menos de esforço. defino minhas prioridades e a primeira delas é encontrar um banheiro. vejo uma porta entreaberta. não tenho tempo de averiguar se estou sendo enganado pelo meu cérebro ou não. ando o mais rápido que posso, tentando me antecipar ao vômito que sobe pela minha garganta.

percebo, tarde demais, que a salinha escura e fétida que imaginei ser o banheiro era alguma outra coisa. havia estantes repletas de pequenos objetos que não tive a mínima curiosidade em descobrir o que eram. terei que me desculpar com vladimir depois. não sei exatamente por que, fecho a porta da pequena sala. sigo as vozes e encontro os dois.

"A princesa já acordou?"

"Lúcio, o que aconteceu comigo?"

"Não se lembra?"

"De nada."

"Nadinha?"

"Neca de pitibiriba."

"Cara, cê tomou um cruzado na cara!"

"Então é por isso que meu rosto dói tanto."

flashes de memória pipocam dentro da minha cabeça e vejo vultos se mexendo ao redor das mesas. então lembro de que meu último pensamento antes do blackout foi que devia ter trazido minha arma.

"Quem foi o filho-da-puta que fez isso comigo. Ah, oi Vlad."

"Oi. O cara que fez isso com você é um cliente esporádico. Não costumo vê-lo muito por aqui."

"E por que ele me bateu?"

"Não sei. Eu estava atrás do balcão e o Lúcio tinha ido ao banheiro. Isso mesmo, né Lúcio?"

"Isso."

"Então, quando vimos a discussão, você já estava sendo nocauteado."

"Mas, vocês não fizeram nada?"

"Claro que fizemos! Se a gente não tivesse te ajudado, você já ia estar comendo grama pela raiz."

"E o cara?"

"Expulsamos ele."

"Nossa, aquelas cervejas bateram forte mesmo!"

"Cervejas? Lucas, depois que chegou, você se entupiu com tanta coisa diferente que achei que ia sair daqui em coma alcoólico."

"Héin?"

"Deixa pra lá."

"Me dê pelo menos uma boa notícia."

"Acho que descobri algo sobre a marreta."

"Não me diga."

"Tô falando sério."

"Então me diga."

"Já ouviu falar da Cápsula?"

"Já ouvi falar de várias. Dá pra ser mais específico?"

"Dá. A Cápsula é uma fraternidade neo-maçônica dissidente, um grupo de velhos endinheirados loucos por ocultismo."

"Hmmm… mas nunca ouvi falar deles."

"E nem vai ouvir. Também não adianta procurar no Google. Toma. Acho que isso pode ser um bom começo."

lúcio me entrega um pequeno cartão branco com algumas anotações feitas à mão. um nome e um número de telefone. tenho dificuldades para ler.

"Celso Fontoura."

esse nome me lembra alguém. tento fisgar algo da memória e isso deve ter ficado evidente em minha expressão.

"Ele é delegado ou desembargador, sei lá. É um figurão. Mas é o elo mais fraco da corrente. Se quiser começar por algum lugar terá que ser com ele."

então algo bem grande e feio morde a isca. algo que dá medo e traz más recordações. celso fontoura. o homem que desgraçou minha vida.

"Vladimir?"

"Fala, Lucas."

"Vomitei no seu escritório."

19
set
06

11.5

o que é um floramor?

conceito idealizado pelo duplo literato de vladimir num dos poucos romances indispensáveis que li, trata-se de uma cadeia de prostíbulos que tem em seu staff la creme de la creme das prostitutas ‘a disposição da creme de la creme dos clientes. homens endinheirados e mulheres sensuais, inteligentes e dispostas a tudo pra privá-los de seus bens.

o antecessor de vladimir apaixonou-se pela idéia e tentou de tudo pra concretizá-la. sem muito sucesso. terminou ficando na média. nada de o melhor do melhor pro floramor nacional. como acontece com quase tudo que se tenta fazer por aqui.

o que mais me interessa na história original, no entanto, é que a rede de prostíbulos é a realização do testamento de um adolescente que morreu virgem mas fantasiava a respeito dela em seus escritos. o avô, homem de posses que, depois do acidente, sem herdeiros, resolve realizar a visão do neto morto. morre, também, mais tarde, antes de ver a rede mundial de bordéis em pleno funcionamento quando, tudo dito e feito, resolve provar a primeira das prostitutas. morre, não é preciso dizer, com um grande sorriso nos lábios.

meu senso de direção volta a funcionar por breves momentos quando estamos quase na recepção do floramor. lúcio mantém-se firme, ileso apesar dos litros de cerveja. em minha imaginação bêbada, um motivo estranho se apresenta. e se o lúcio que está comigo agora não é mais o mesmo que estava no barzinho do faraó? e se aquele lúcio ficou lá e outra versão dele saiu comigo a fim de prolongar a maratona alcoólica? se é possível acontecer com ele pode ter acontecido comigo também. em algum ponto do passado próximo, uma versão anterior de mim mesmo ficou pra trás, incapaz de se mover adiante no espaço-tempo por não saber distinguir espaço de tempo. este que avança agora, por outro lado, sabe. apesar de estar perto da inconsciência decorrente do consumo exagerado de drogas recreativas legais não deixa, também, de estar perto da iluminação final em que tudo se encaixa e passa a fazer um sentido novo e assustador. tá, sem a parte do "assustador". é o porre falando. há o lucas sóbrio e há o lucas alterado. estou tentando decidir qual dos dois mais me agrada quando lembro de repente que, sim, ambos estão em mim, sou ambos, tudo se completa.

"Lucas, cê tá legal, véio?" ouço a voz distante de lúcio.

"Acho que tô ficando sóbrio. Preciso de um refil."

tento voltar a pensar torto pra encontrar a resposta pra pergunta. que pergunta? me esforço, forço os neurônios intoxicados sem sucesso. algo a ver com ferramentas. tem aquela garota gostosa, também, cujo nome me escapa momentaneamente. algo errado a respeito dela. talvez encontre um pouco de carinho com alguma das protegidas de vlad. conhecimento no sentido bíblico, penso.

mas aí, de repente, tudo que vejo é

18
set
06

11.

ir ao banheiro como aventura potencial costuma acontecer com freqüência quando se tem vinte, vinte e poucos anos. evitar as poças de urina ou as paredes infectas de cubículos como este do bar em que encontrei lúcio pode parecer terrivelmente engraçado naquela idade. não mais. se pensar que bebi só o suficiente e nada mais a coisa fica pior. claro, estou metabolizando cerveja mais rápido, é a única explicação.

encarar o vaso sanitário sem pensar em lagostas é impossível.

uma estrela de davi enfeita o botão de descarga. mas está de cabeça pra baixo. será que só judeus podem usar o trono? elogios ‘a capacidade e especialidade sexuais de várias mulheres e homens desconhecidos, assim como alguns telefones pra contato, também adornam as paredes. é um tipo de catálogo pra conoisseurs que não querem usar o auxílio ‘a lista.

reencontro com alguma dificuldade o caminho de volta ao bar. lúcio, apesar de ter bebido três vezes mais que eu, não parece disposto a ir ao banheiro. talvez tenha a ver com o medo do desconhecido que o ameaçou. talvez sua bexiga seja de aço. quando chego ele está ocupado com seu cigarro outra vez e tenho que suportar o cheiro.

"Não tá fumando demais, não?" pergunto, sem muita convicção.

"Não existe essa coisa de fumar demais, Bono. Pelo menos não com um cigarro que nunca acaba."

quase penso em perguntar se a história do fumo abençoado é verdadeira, mas resolvo deixar pra lá. tem outro assunto que quero abordar. e sei que ele entende desse.

"A garota que me contratou pra encontrar a marreta…"

"É boa? Se você tá falando dela deve ser, não?"

"É ótima. Fiz vários filmes mentais com ela enquanto conversávamos no escritório."

"Ainda estão invadindo e roubando?"

"Menos do que antigamente."

"Tá, mas fala da garota."

"O nome dela é Amélia. Mas tem um detalhe que parece ser difícil de superar. Pelo menos pra ela. Eu não me importo."

"Que é…?"

"Ela diz que é freira."

"Ah, isso nunca foi motivo. E freiras são ótimas na cama."

sabia que ele era a pessoa certa pra perguntar a respeito.

"Escuta, Lúcio, vamos dar uma andada? Essa fumaça não ajuda nem um pouco em ambiente fechado."

"Tudo bem. Tem algum lugar em que cê queira ir?"

"Talvez a gente possa passar no FlorAmor."

"Cara, faz séculos que não vou lá."

"Quem sabe a gente não encontra o Vladimir, toma umas vodcas…"

"Boa pedida. Cê sabe se o Vlad ainda lê a sorte?"

"Ele também é metido com essa coisa de ocultismo?"

"Antes de você nascer, meu caro Bono."

"Mas o Vlad tá na nossa faixa etária, pô!"

"Se você acha…"

vladimir não era o nome verdadeiro dele, claro. como a maioria das pessoas com quem me relaciono, ele usava um nom de plum pra preservar o lado legal de sua vida. o "floramor" era um negócio lucrativo que tinha, também, mudado de nome quando vlad assumiu a gerência. antes se chamava "lolita". vladimir quis mudar o nome por motivos óbvios. a associação que se faria de seu negócio com um antro de pedofilia se o mantivesse era óbvia demais pro seu gosto. na mudança, preservou a homenagem a um de seus autores preferidos.

peço a conta ao garçom. ele traz a nota com o valor, e fica sem saber a quem entregar. lúcio, sem dizer nada, aponta para mim. verifico o valor e acho que há algo errado. a conta indica muito mais itens do que consumimos. quando levanto a cabeça para protestar, lúcio me interrompe.

"O valor tá certo. Recebi um conhecido pouco antes de você chegar."

"Então, nada mais justo do que você pagar o que vocês beberam, né não?"

coloco metade do valor sobre a mesa.

"Vai tomar no cu, Bono. Deixa de ser mão-de-vaca e paga logo essa porra dessa conta."

"Mas…"

"Bono, cê vai ficar mais pobre por causa de meia dúzia de cervejas?"

"Tá bom. Mas essa tá no meu caderninho, hein?"

"Fica tranqüilo. Um dia ainda vou ter chance de retribuir. Em dobro. E aí vai ser você quem virá para o ‘meu caderninho’."

sinto um arrepio na base do pescoço, mas evito olhar para lúcio. conto o dinheiro e deixo em cima da mesa, sobre a conta. nos levantamos e, com o indicador, mostro ao garçom que deixamos o que devíamos sobre a mesa.

minha cabeça gira. marretas sagradas, cigarros infinitos, amigos que desconheço e lagostas. acho que a bebida está fazendo efeito.

16
set
06

Se…

…quiser saber mais a respeito de Lúcio, o personagem novo de MARRETA, clique aqui.  Hipertexto? Bah!

16
set
06

10.

é impossível não perceber como ele não se destaca dos demais clientes do bar, um desses botecos de esquina, daqueles que servem ovos coloridos, torresmo mumificado (isso para não falar dos miúdos) e aguardente de baixa qualidade, aqueles onde discrição é a palavra de ordem e os funcionários se comportam como se fossem surdos. ele está lá, sentado numa mesa de canto onde estão duas garrafas de cerveja vazias e uma outra já pela metade, da mesma marca que está indicada na mesa e nas cadeiras de metal. cervejas que provavelmente terei de pagar.

como nunca entendi direito o nome dele e por causa de uma das garotas que andavam em sua companhia, por um tempo o chamei de "outro". a garota achava que éramos parecidos sabe deus por quê. depois comecei a usar um nome, um quase análogo de "lucas"… chamei-o "lúcio". dizer que é um tipo esquisito seria chover no molhado. como já deve ter dado pra perceber, como no silogismo de grouxo marx, qualquer um que aceite minha companhia com naturalidade é um possível suspeito.

mas lúcio não é assim: me fez sentir ‘a vontade desde o primeiro dia em que conversamos. meio monstro, meio santo, é como o dean moriarty do meu sal paradise. 

o olfato denuncia que ele acendeu aquela coisa de novo. seu cigarro milagroso. dizem que foi abençoado pelo próprio cristo (mais uma relíquia?) e se refaz toda vez que é apagado. o cheiro é terrível. afinal, quanto tempo leva pro fumo mofar?

"E aí?"

"Tudo bom? Quer dar um tapa?"

"Não, valeu."

"Diz aí. Você não me ligou só pra matar saudade, né?"

"Não, não. Me diz: o que cê sabe sobre a marreta?"

"Héin? Marreta? Eu tinha uma, mas emprestei pro vizinho uma vez e…"

"Sem zoeira, Lúcio! Estou falando de uma marreta específica, sabe? Aquela de jesus e tal. Cê deve saber qual é."

"Ahhh! Você está falando DA marreta. Saquei. Mas, o que cê quer saber exatamente? Peraí! Já entendi. Roubaram, né?"

"Isso."

"E você quis me encontrar na esperança de que eu já apontasse os suspeitos e, quem sabe, até o culpado, né?"

"Bom, já que você tocou no assunto…"

"Cara, é por isso que eu não tenho dó nenhuma de te fazer pagar as minhas cervas. Falando nisso, pede pro garçom descer mais uma, vai."

e eu peço. já faz um tempo que não o vejo e ele parece um pouco mudado, talvez mais paranóico que o de costume, olhando por cima dos ombros o tempo todo, como se na espera de um ataque repentino.

a cerveja chega, o cigarro acaba e ele o deposita na cigarreira de prata que tira de um bolso insuspeito, invisível, no casaco.

"Escuta, aconteceu alguma coisa? Cê tá bem?", pergunto sem mais rodeios.

"Se eu contasse você não acreditaria. Parece coisa de gibi de terror… ajudei uma amiga a ir pra casa e agora tenho que lidar com as conseqüências. Você conhece o enredo: moça fantasma assassinada e condenada a vagar enquanto não solucionar o enigma da própria morte. Mandei o assassino numa viagem sem volta ao redor do próprio umbigo mas ele tinha as costas quentes com as pessoas erradas. Erradas pra mim, quer dizer. E não são bem pessoas."

por que fui perguntar?

"E sobre, você sabe, o item em questão?"

"Posso perguntar por aí. Talvez o Mosca ou o pessoal da "infernet". Mas vai te custar."

"Quanto?"

"Não é desse tipo de pagamento que estamos falando, Bono."

enigmático. ele é um dos poucos que usa meu apelido com propriedade e nos momentos certos. pego meu copo e provo a cerveja. não é uísque, mas preciso trabalhar mais um pouco antes de voltar pro escritório.

12
set
06

9.

chego à sede da ordem. confesso que esperava algo mais tradicional. um templo com t maiúsculo, com uma igreja, torres e, por que não?, gárgulas. algo um pouco mais gótico.

em vez disso, estou em frente a um portão metálico, feito provavelmente por um serralheiro bastante entediado. e inexperiente. ao redor do portão, um muro branco, caiado. e o interfone barato é a cereja que faltava no bolo da minha decepção. vá lá.

tocar ou não tocar? que questão, não? dou meia volta. rolo nos dedos um cigarro imaginário. levo-o aos lábios e trago sofregamente. e se amélia atender, o que digo? chuto o ar e quase perco o equilíbrio.

opto, afinal, por tocar.

para meu desespero, quem atende não é amélia. nem outra freira com os mesmos dotes. nem outra freira ligeiramente menos bonita. nem outra freira. um rapaz com um corte de cabelo reco, dentes enormes e cuja pele lembra o solo lunar põe a cabeça por entre a fresta.

"Pois não?"

"Bom dia. Meu nome é Lucas e eu estou procurando a… irmã Amélia."

"Irmã Amélia não está. Seria só com ela?"

como assim não está?

"Como assim não está?"

"Desculpe, senhor?"

"Não, quem deve se desculpar sou eu. Na verdade acho que não tomei o cuidado de enfatizar que estaria aqui hoje. E confesso que fiquei um pouco surpreso com a ausência dela. É que sempre achei que as irmãs tivessem mais afazeres dentro do convento."

"Templo."

"Sim, perdão, templo. Então, eu poderia falar com o responsável pelo templo?"

"Irmã Dulce também não está."

"Tem alguém aqui além de você?"

"Tem, mas os outros estão ocupados. Posso ajudar?"

"Talvez. Me diga, você sabe fazer um site?"

muito poderia ser dito a respeito do que é e do que parece ser. se tomasse esse cara como exemplo tenho certeza de que você diria que, sim, é ele quem divulga o que deveria ser secreto… afinal, ele tem a cara de pizza. ele deve ser o nerd supremo que nada faz além de sentar diante do computador (obsoleto, ‘a manivela) e graças ‘a um supremo exercício de vontade (como no 5 contra 1) formular em html barato o que qualquer um pode fazer usando um wiki.

expectativas altas.

"Não. O sr. não ouviu quando respondi a primeira vez?"

mais um desses lapsos e vou começar a ter vergonha de mim mesmo. como naquela vez em que esqueci de pagar e fiquei parado em frente ao caixa da loja sem dizer nada, talvez esperando que algo definitivo acontecesse e mudasse tudo.

expectativas frustradas, só resta seguir em frente. ou pros lados.

como as lagostas se movem, mesmo?

10
set
06

8.

começo com o google. engraçado pensar que onisciência hoje significa procurar, encontrar e ordenar informações em 0,18 segundos. será que isso caberia como comentário teológico pra amélia? onisciência do séc. xxi?

pro verbete que procuro encontro 115.000 ocorrências. preciso descobrir uma forma de filtrar a informação. me ocorre que, se onisciência fosse simplesmente o ato de saber tudo e se isso dissesse respeito só ao acesso de informações mas não como utilizá-las, se explicariam muitas coisas sobre a bíblia, sobre deus e o universo. pensando bem, é melhor guardar a observação na minha reserva particular.

a história da marreta, ao contrário do que pensava, não é tão obscura assim. há vários grupos dedicados ao estudo dos significados das relíquias sagradas e a marreta (que, a título de curiosidade, sempre perde para o prego) costuma aparecer com freqüência encabeçando as listas de relíquias cristãs míticas.

paguei por duas horas, suficientes para descobrir que já produziram inclusive uma história em quadrinhos sobre o assunto nos estados unidos.

encontrei mais informações em outros idiomas além do inglês, mas, se meu domínio da língua bretã já é quase nulo, nem me dou ao trabalho de tentar o francês ou o alemão.

pensei em consultar amélia. religiosos normalmente são poliglotas e esse seria um pretexto pra ter mais uma oportunidade de sentir aquele cheirinho de amaciante, de ver mais uma vez aquele corpo que é um verdadeiro pecado (sic). mas tenho que pesar os prós e os contras. quem está sendo pago sou eu.

a presença massiva de pessoas bem mais novas que eu me força a cogitar com seriedade o abandono definitivo desse serviço. claro que isso me obrigaria a considerar a hipótese de investir esse adiantamento em uma ferramenta de trabalho. aquele pocket pc com conexão wireless, talvez. ou mesmo um laptop.

tomo uma nota mental – que provavelmente vou esquecer daqui a alguns minutos –  e a listo em segundo lugar no meu rol de prioridades.

observo os garotos alheios em seus headphones, absorvidos em seus jogos, fuzilando colegas virtuais. não notariam o caderninho com motivos infantis (o único que havia na papelaria)   que comprei para fazer minhas anotações mesmo que o esfregasse em seus narizes constipados. pensando bem não notariam nem amélia. melhor pra mim. volto à pesquisa.

finalmente chego a uma página em português.

mais um compêndio esotérico e, mesmo não entendendo muito do assunto, percebo que o webmaster não estava muito preocupado em colocar os assuntos num contexto ou mesmo em deixar aquilo acessível a um leigo como eu.

o texto sobre a marreta não acrescenta nada à narrativa de amélia e continuo vagando pelo conteúdo caótico da página, até que um link me chama a atenção.

é bom demais para ser verdade, mas decido apostar nisso.

anoto o e-mail do autor da página.

já sei aonde ir.

meu tempo está acabando, tento me concentrar e cruzar todos os dados que obtive de início.

não consigo pensar em nada melhor, então volto ao google e digito "macaco+rato+lagostas+mãe".

só por curiosidade.




setembro 2006
S T Q Q S S D
 123
45678910
11121314151617
18192021222324
252627282930  

Comentários

... em tequilaLila
Paulo Fernandes em 4.
Paulo Fernandes em 3.
salvaterra em not the end
Moraes em 18.1

Blog Stats

  • 1.073 hits