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21
jan
09

16.3

Eu precisava pensar rápido, encontrar uma saída praquela situação esdrúxula. Quer dizer, nesse ponto já deve ter ficado evidente o motivo pelo qual disse que não confio nas minhas memórias do que, de fato, aconteceu em Peniel.

Quão alteradas as percepções de uma pessoa podem ser sem comprometer sua sanidade? Eu já quase acreditava naquelas histórias absurdas de obiturações  que captam sinais de rádio.

E pra completar, o Garça Negra, seqüestrado e substituído por um glúon, agora dava as caras e todo mundo agia como se aquilo fosse natural, fizesse parte da ordem do universo e tal… tava pensando nisso quando me deu o estalo!

“Tudo bem, dona Miriam, eu topo usar o ponto eletrônico…”

– É link teletrônico, Lucas.

“Ótimo, brigado pela correção… link. Eu uso o lance desde que vocês me expliquem porque ninguém estranhou o aparecimento do nosso camarada Afonso aqui, do nada, sem maiores explicações. Digo, o cara já foi substituído uma vez. Quem me garante que esse aí não é outro glúon?”

– Peraí, Profit! Não faz muito tempo que cê ficou me consolando, dizendo que não tinha acontecido nada com meu pai, que uma ‘ameba espacial’ não ia dar conta de alguém tão assustador quanto o Garça e tudo mais…

“Ééé… bom, Mira, você já respondeu sua pergunta. Eu tava mesmo te consolando.”

– Lucas, eles podem disfarçar suas formas, mas a habilidade pra controlar feições está além da tecnologia que têm.

“Mas dona Miriam…”

– Preste atenção: os glúons que você encontrou não eram todos parecidos?

“É, todo mundo tinha a cara do Peter Lorre.”

– Então. Além disso se ele fosse um glúon não teria passado por Heytor.

Tinha isso, claro. Daí lembrei da última visão que tive de Heytor, na praia perfeita lutando com um glúon que pouco antes usava a fantasia do Garça.

“Ah! Então, Afonso, como é que tá o Heytor? E por que cê não recuperou tua fantasia?”

– Muito bem, Profit. Suas dúvidas parecem legítimas. – ele disse isso em um tom que tava longe de ser amistoso, o que contava pontos a seu favor. – Heytor está bem – ele continuou – conseguiu romper o exoesqueleto mimético do glúon e a criatura explodiu em chamas.

“Cara, cê tá brincando! Exoesqueleto não é que nem a casca de um caranguejo? Aquela coisa tava mais pra água-marinha!”

– Rárá! Certo. Leve em conta que estamos falando de uma espécie alienígena avançadíssima, tão antiga quanto os núcleos dos átomos, e você vai entender que a comparação com um crustáceo primitivo é patética.

“Cê tá dizendo que não gosta de caranguejo, ‘Garça’?”

– Rapaz, você está testando minha paciência. Primeiro dorme com minha filha, agora vai querer caçoar do meu totem?

“Não, quer dizer, sobre esse lance de dormir…”

É, eu sei, tinha ido longe demais na tentativa de salvar meu rabo. Escapei de usar a porrinha eletrônica e ia levar porrada. Fazer o quê? Eu gosto de caranguejo.

– Pára, pai. Você provocou que eu ouvi. Explica logo pra ele essa coisa do exoesqueleto e pronto!

Essa era minha Mira! Sempre me defendendo do pai maníaco. Ensaiei um sorrisinho pra ela que me fuzilou com o olhar e formou as sílabas silenciosas de um ‘não provoca’ com aqueles lábios fantásticos.

– O exoesqueleto dos glúons é parte da tecnologia de sobrevivência em ambientes hostis, ou seja, cujas atmosferas provoquem sua combustão. Ele os isola e sua capacidade mimética lhes permite assumir formas diferentes: bípedes, quadrúpedes… até amebas, sem explodir em chamas.

“Por isso que ele não pegou fogo quando a Mira acendeu o batom!”

– Mas de que porra esse…

– Pai, olha a linguagem! Ele tá falando do mini-maçarico.

“Eles podem se disfarçar de pássaros também, né?”

– Profit, o que é um bípede pra você?

“Ããã…”

E Mira me deu uma cotovelada nas costelas. O pai padecia da boa e velha soberba, dava crédito demais à sua inteligência e subestimava todo mundo que não fosse ele ou um deus alienígena. A filha, por outro lado, sabia que eu tava de sacanagem. Gostava cada vez mais dela e meu interesse já começava a ir além da recreação sexual com uma mulher perfeitamente deliciosa.

“E tua fantasia? Cadê?”

– Estava suja. Imprópria para o uso.

“Então a gente se livrou dos glúons, certo?”

– rrrmenino…

Puta susto! Era uma… voz que ainda não tinha ouvido. A ficha caiu. O grunhido era de Gauge. Ele, bom, meio que falava afinal. Era um som desagradável pra cacete.

– rrrglúons rrrsão rrruma rrrentidade.

– O que Gauge quer dizer – Miriam interrompeu – é que uma vez que um deles chegou aqui, todos os outros partilharam seu conhecimento e aprenderam os caminhos. Eles sabem, inclusive, que obstáculos enfrentarão. Você sabe, ele têm uma consciência partilhada, apesar de também terem tratos que quase chegam a formar personalidades individuais.

13
jan
09

16.2

Sim, como qualquer ser humano afoito com a autopreservação, minha atenção tinha sido dirigida à ameaça mais imediata do Garça, melhor, do Afonso, melhor, do pai da Mira, e Gauge e sua companheira meio que ficaram por ali como figurantes no ‘drama’ de minha vida.

Eu tava na mesma sala que o sujeito que, me disseram, ‘é o melhor de nós’ (levando em consideração que isso foi dito por alguém da comunidade fantasiada e que esses caras têm um ego do tamanho do Godzilla, é muita coisa) e, segundo informações oníricas que se provaram precisas com a corroboração de Roberto Maia (ou Velocidade da Luz), tinha sobrevivido à queda de seu disco voador (ou o que fosse), derrotando os glúons que o perseguiam em combate, ocultado uma cidadezinha inteira de detecção humana e/ou alienígena e construído uma comunidade utópica usando-a como base e, ainda assim, me comportava como o pedestre que anda pelas ruas acotovelando as pessoas, ou um turista de shopping que só enxerga o que está imediatamente à sua frente ignorando os demais que ocupam o mesmo espaço, ou o motorista que não vê pedestres e só vê outros carros quando entram em rota de colisão com o dele.

Toda a raiva que dirigi moderadamente a tantas pessoas pareceu, de repente, injustificada, uma vez que eu tinha acabado de fazer o mesmo.

E lá estava Gauge. Muito em forma prum cara que caiu em nosso monte de lama em 1936. Ligeiramente curvado pra frente mas não por conta do peso dos anos. Era característica de sua espécie, que tinha a parte superior do corpo (tronco, ombros, braços, cabeça) muito desenvolvida. Conveniente pra um povo que explorava estrelas e se engajava em combates de morte há milênios.

Gauge me fazia lembrar de lobos, ruskies, pastores. Talvez por causa da barba cerrada e cabelos abundantes, talvez, novamente, por causa da postura arqueada quase animalesca que, entre outras coisas, ajudava a proteger peito e abdômen (as partes mais moles do corpo que dão acesso aos órgãos vitais) e aliviava a carga das ‘patas’ traseiras, talvez por causa das orelhas que lhe davam um aspecto de atenção excepcional, ou às narinas que se dilatavam cheirando o ar com enorme prazer enquanto ele jogava a cabeça pra trás… mas eram os olhos que mais denunciavam esse parentesco canino. Olhos zen, que não entregavam o que se passava em sua mente e ainda assim eram fodidamente expressivos, que podiam estar dizendo algo como ‘continue falando e trate de manter-me interessado, porque sempre posso fazer uso gastronômico do que não me apetecer de outra forma’, ou coisa parecida. Era como olhar pro Django, meu ex-cachorro. Grandes olhos amendoados, sempre límpidos, e pronto pra confusão a qualquer momento…

Acho que deu pra entender. Esse aspecto de ‘porra, que ele vai fazer na seqüência?’ na verdade era mais assustador que as técnicas de provocar medo do Garça. Quer dizer, com o Garça cê poderia prever um olho roxo ou uma fratura exposta ou um tiro na cabeça… com Gauge, por outro lado…

E tinha a porra do sonho na estrada! Entalado na boca do lobo! Só quando tava entrando em desespero com a possibilidade de virar o almoço de Gauge lembrei da mulher.

E era uma mulher mesmo, não uma dessas meninas fantasiadas de adulta e, definitivamente, não uma senhora da terceira idade tentando passar por mocinha. Mulher, ponto final.

Ela acariciou o ombro de Gauge como se fosse importante manter um vínculo com ele. Ele encostou sua cabeça enorme na mão dela. É, o vínculo ali, evidente, era diferente do de uma mulher e seu bicho de estimação.

Eu devia estar embasbacado demais porque Mira fez uso de seus dotes de âncora com a realidade e estalou os dedos diante de meus olhos dizendo ‘terra pra Profit!’ três vezes. Então as apresentações voltaram ao cardápio do dia.

– Meu nome é Miriam, Lucas, e se você quiser falar com Gauge temos duas opções: ter paciência com as limitações vocais que ele tem ou usar o link teletrônico.

“Ah, oi, meu nome é… rárárá! Você sabe meu nome, né? E… se eu usar o tal link vou desmaiar, entrar nalguma realidade virtual ou passar por algum tipo de iluminação espiritual súbita?”

– Realmente? Não, Lucas. Você só se tornará capaz de processar e emitir os agregados de imagens/pensamentos através dos quais Gauge prefere comunicar-se. É tudo muito simples e higiênico.

08
jan
09

16.1

O lance do biofeedback, a sensação que eu tinha naquela caminhada que, primeiro me tirou do ar e depois me enfureceu, é que meu sistema endógeno tava trabalhando com sobrecarga. Opióides e hormônios, endorfinas e adrenalina, eu tava quimicamente desequilibrado e não tinha meu quartilho de Jack pra dar uma pancada no sistema nervoso saturando-o de álcool e forçando o pâncreas a contrabalançar bombeando insulina. Tava na cara, pelo menos pra mim, que o que viesse a seguir ia ser uma merda irreconciliável.

Toda aquela coisa de utopia futurista sócio-tecnológica começou a me alcançar a partir do momento que ganhei perspectiva. A organização vertical da cidade em níveis tinha ou não tinha uma idéia subjacente de estratificação social, quase como o sistema de castas indiano? É o que acontece quando sua perspectiva vem graças a um monte de substâncias que teu corpo produz mas que não administra conscientemente. Iluminação e confusão podem muito bem parecer a mesma porcaria.

Daí preu ficar mais transtornado ainda com a questão social, a gente entrou num salão que, sei lá, parecia saído dum daqueles filmes hollywoodianos sobre a realeza. Um daqueles com a Cate Blanchett no papel de rainha… hm, Cate… cê entendeu: alguém precisava demonstrar quão grandioso e superior era com relação ao ‘resto’. Era desse jeito que eu percebia aquela ostentação. Como se eu fosse um ‘resto’. Some a isso a admiração recém-adquirida pelos meus acompanhantes e o desequilíbrio químico que experimentava e, presto!, sem piscar os olhos eu me senti no direito de chutar a bunda de qualquer entidade ‘superior’ que viesse me encher o saco.

No caso Gauge, uma mulher bem vestida que aparentava uns 30 anos, e um sujeito de mais ou menos 50, ainda em forma, vigoroso, pouco mais alto que eu e ostentando uma orgulhosa careca completa… disse que ele era fodidamente familiar?

Foi o careca, aliás, que causou maior impacto no meu grupo, sendo mais específico, em Mira, que quando o viu correu pros seus braços. ‘Encontro fodido’, pensei comigo mesmo, cheio de ressentimento, com a certeza atroz de que nossa combinação de ‘sexo recreacional depois da missão’ ia furar por conta da interferência do Sr. Carecão. Como não dava pra evitar, me aproximei soltando fumaça e com o coração sangrando.

Quando meu grupo tava perto o bastante o careca me olhou diretamente e eu soube quem ele era. Quase mijei nas calças. É, ele usava jeans e camiseta pretos, botas idem, mas eu não tinha relacionado essa informação com quem o cara seria. Bastou me olhar uma vez e bum! Uma criatura cuja natureza era tão duvidosa e sobre a qual só se sabia uma coisa: ele provocava medo mesmo sem sua fantasia.

– Lucas, vem aqui! Deixa eu te apresentar…

“Garça?”

– Em roupas civis não, Profit. Afonso Guerra. Te subestimei, não é? Você afinal encontrou Peniel…

Disse isso balançando minha mão inerte e fria e fez mais uma de suas coisas assustadoras de combatente sombrio do crime: me cheirou.

– Mira – ele disse e quase me caguei – você deitou com esse… ‘detetive’?

‘Fodeu’, pensei. Eu tinha mesmo tomado liberdades com Mira Bandeira. Não chegamos a concluir o ato nem no gabarito, mas tinha me agarrado com ela na primeira oportunidade. ‘E agora, o cara que a tinha treinado sentiu o cheiro dela em mim e vai me cobrir de porrada’, foi minha conclusão. Afinal, eu tinha tido intimidades com sua… pupila? Amante?

A iminência de levar uns sopapos ajudou e muito a diminuir minha revolta social. Agora meus instintos de autopreservação estavam ligados e eu tendia mais pra parte ‘fugir’ do que pra ‘lutar’.

O que Mira disse a seguir me deixou chocado, mas não diminuiu em um miligrama meu medo.

– Pára com isso, pai! O Lucas é destrambelhado mas tem bom coração. Além disso eu não sou mais nenhuma menininha.

“Fodeu duplo!!!” A situação só piorava e Mira sequer tinha negado nosso suposto intercurso. ‘Morrer agora seria um puta alívio’. A mão do Garça soltou a minha. ‘Ele vai me socar’, pensei.

– Olha a língua na frente da minha filha, Profit. Não é assim que se trata uma mulher.

– Paaaiii!!! – eu ouvi Mira dizer e, estranhamente, não caí inconsciente. Nem de medo nem por nocaute.




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