Eu precisava pensar rápido, encontrar uma saída praquela situação esdrúxula. Quer dizer, nesse ponto já deve ter ficado evidente o motivo pelo qual disse que não confio nas minhas memórias do que, de fato, aconteceu em Peniel.
Quão alteradas as percepções de uma pessoa podem ser sem comprometer sua sanidade? Eu já quase acreditava naquelas histórias absurdas de obiturações que captam sinais de rádio.
E pra completar, o Garça Negra, seqüestrado e substituído por um glúon, agora dava as caras e todo mundo agia como se aquilo fosse natural, fizesse parte da ordem do universo e tal… tava pensando nisso quando me deu o estalo!
“Tudo bem, dona Miriam, eu topo usar o ponto eletrônico…”
– É link teletrônico, Lucas.
“Ótimo, brigado pela correção… link. Eu uso o lance desde que vocês me expliquem porque ninguém estranhou o aparecimento do nosso camarada Afonso aqui, do nada, sem maiores explicações. Digo, o cara já foi substituído uma vez. Quem me garante que esse aí não é outro glúon?”
– Peraí, Profit! Não faz muito tempo que cê ficou me consolando, dizendo que não tinha acontecido nada com meu pai, que uma ‘ameba espacial’ não ia dar conta de alguém tão assustador quanto o Garça e tudo mais…
“Ééé… bom, Mira, você já respondeu sua pergunta. Eu tava mesmo te consolando.”
– Lucas, eles podem disfarçar suas formas, mas a habilidade pra controlar feições está além da tecnologia que têm.
“Mas dona Miriam…”
– Preste atenção: os glúons que você encontrou não eram todos parecidos?
“É, todo mundo tinha a cara do Peter Lorre.”
– Então. Além disso se ele fosse um glúon não teria passado por Heytor.
Tinha isso, claro. Daí lembrei da última visão que tive de Heytor, na praia perfeita lutando com um glúon que pouco antes usava a fantasia do Garça.
“Ah! Então, Afonso, como é que tá o Heytor? E por que cê não recuperou tua fantasia?”
– Muito bem, Profit. Suas dúvidas parecem legítimas. – ele disse isso em um tom que tava longe de ser amistoso, o que contava pontos a seu favor. – Heytor está bem – ele continuou – conseguiu romper o exoesqueleto mimético do glúon e a criatura explodiu em chamas.
“Cara, cê tá brincando! Exoesqueleto não é que nem a casca de um caranguejo? Aquela coisa tava mais pra água-marinha!”
– Rárá! Certo. Leve em conta que estamos falando de uma espécie alienígena avançadíssima, tão antiga quanto os núcleos dos átomos, e você vai entender que a comparação com um crustáceo primitivo é patética.
“Cê tá dizendo que não gosta de caranguejo, ‘Garça’?”
– Rapaz, você está testando minha paciência. Primeiro dorme com minha filha, agora vai querer caçoar do meu totem?
“Não, quer dizer, sobre esse lance de dormir…”
É, eu sei, tinha ido longe demais na tentativa de salvar meu rabo. Escapei de usar a porrinha eletrônica e ia levar porrada. Fazer o quê? Eu gosto de caranguejo.
– Pára, pai. Você provocou que eu ouvi. Explica logo pra ele essa coisa do exoesqueleto e pronto!
Essa era minha Mira! Sempre me defendendo do pai maníaco. Ensaiei um sorrisinho pra ela que me fuzilou com o olhar e formou as sílabas silenciosas de um ‘não provoca’ com aqueles lábios fantásticos.
– O exoesqueleto dos glúons é parte da tecnologia de sobrevivência em ambientes hostis, ou seja, cujas atmosferas provoquem sua combustão. Ele os isola e sua capacidade mimética lhes permite assumir formas diferentes: bípedes, quadrúpedes… até amebas, sem explodir em chamas.
“Por isso que ele não pegou fogo quando a Mira acendeu o batom!”
– Mas de que porra esse…
– Pai, olha a linguagem! Ele tá falando do mini-maçarico.
“Eles podem se disfarçar de pássaros também, né?”
– Profit, o que é um bípede pra você?
“Ããã…”
E Mira me deu uma cotovelada nas costelas. O pai padecia da boa e velha soberba, dava crédito demais à sua inteligência e subestimava todo mundo que não fosse ele ou um deus alienígena. A filha, por outro lado, sabia que eu tava de sacanagem. Gostava cada vez mais dela e meu interesse já começava a ir além da recreação sexual com uma mulher perfeitamente deliciosa.
“E tua fantasia? Cadê?”
– Estava suja. Imprópria para o uso.
“Então a gente se livrou dos glúons, certo?”
– rrrmenino…
Puta susto! Era uma… voz que ainda não tinha ouvido. A ficha caiu. O grunhido era de Gauge. Ele, bom, meio que falava afinal. Era um som desagradável pra cacete.
– rrrglúons rrrsão rrruma rrrentidade.
– O que Gauge quer dizer – Miriam interrompeu – é que uma vez que um deles chegou aqui, todos os outros partilharam seu conhecimento e aprenderam os caminhos. Eles sabem, inclusive, que obstáculos enfrentarão. Você sabe, ele têm uma consciência partilhada, apesar de também terem tratos que quase chegam a formar personalidades individuais.
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