Hobby Estranho

Abs Moraes

I.

Os cabelos ajustados com perfeição em um coque na parte anterior da cabeça da mulher no carro ao lado despertaram mais uma vez minhas imaginação e curiosidade. O monturo preto de brilho acetinado denotava correção a toda prova, indicava um comportamento quase compulsivo-obsessivo com a aparência. Sim, a aparência. Num mundo regido pela extrema importância dada à superfície, muitas patologias perigosas passam despercebidas. Seria o caso dela?

Ao entrar no prédio de escritórios, cruzei com o boy da agência de turismo. Brincos e piercings adornando a cabeça que culminava num orgulhoso moicano ostentado à custa de paciência diante do espelho e uma quantidade perigosa de gel glicerinado. Na idade dele, o importante é pertencer a um grupo. Dentro de dez anos ele olhará constrangido para fotografias que documentarem suas tentativas de tribalizar-se, mas no momento em que nossas sombras se sobrepuseram no chão encerado do saguão do prédio, pude ler com clareza em seu sorriso metálico a opinião que tinha a meu respeito. Muito desabonadora, claro. Mas sarcasmo não é província exclusiva de adolescentes e “sorriso” é meu jeito eufemístico de demonstrar o meu, substantivando assim o esgar dúbio do rapaz. Mais uma vez a aparência é prevalente, mesmo que a patologia ainda não se tenha manifestado.

Já acomodado em minha mesa e estudando gráficos e planilhas desenhadas na fosforência verde da tela do computador, não pude deixar de olhar insistentemente a cabeça de um colega na mesa vizinha. Como um frenologista amador, senti a tentação de pedir-lhe permissão para apalpar seu crânio seminu, resultado de um corte de cabelo popular hoje em dia que, de muitas maneiras, é similar à tosa infligida a animais domésticos para prevenção ou tratamento de doenças de pele. Seria o toque um instrumento eficaz na detecção de uma doença mental? Meus dedos formigariam em contato com cabelo tão curto quanto uma barba de três dias?

Cabelos ou cortes de cabelo não são facilmente associados aos seus donos e suas idiossincrasias ou, pelo menos, àquelas que vão além da superfície.

II.

Hobbies nascem da necessidade de distração das agruras da vida diária e podem tornar-se tão massacrantes quanto elas, tão rotineiros e obsessivos quanto o coque perfeito da mulher no carro ao lado, à espera do sinal verde para o prosseguimento de seu percurso. O meu consistia da observação atenta dos outros, de seus tiques, hábitos e aparências e da comparação posterior dos dados levantados com arquétipos literários.

Seu nascimento deu-se em minha fase cervejas-sexo-casual-escatologia-egargalhadas- altas que coincidiu com a descoberta da literatura polêmica e sexista de Charles Bukowski. A identificação inevitável ocorreu num quarto de motel barato, pós-coito, em que lia o inconseqüente CARTAS NA RUA que relata, quase autobiograficamente, a relação do autor com uma ninfomaníaca. A descrição de minha parceira do momento (que se lavava no banheiro impessoal, usando miniaturas de sabonete e sachês de shampoo) no livro era perfeita da cabeça aos pés, externa e internamente, e não tinha sido escrita por mim.

Daí por diante, não pude deixar de reconhecer o amigo louco, bêbado, infame e inteligente que correspondia ao Neal Cassady descrito por Kerouac em ON THE ROAD ou minha própria similaridade com os detetives de clássicos como Chandler, Hammet ou MacDonald. O salto perigoso entre literatura e realidade fora dado mas eu estava longe de entender o quanto uma pode afetar a outra.

III.

Fui rejeitado, na adolescência, por todos os grupos aos quais quis pertencer. Minha falta de aptidão para os esportes foi um dos fatores determinantes para que isso acontecesse. A religiosidade de minha família, outro.

Quando entendi que os adultos com que tinha contato não se interessavam por mim e minhas fantasias juvenis, resignei-me a atravessar esta fase da vida com o mínimo possível de contato humano (é claro que, com a chegada da puberdade, desejei todo o contato humano possível com o sexo oposto). Isso significou ter sempre à mão algo para ler nos intermináveis vinte minutos de recreio e não houve repelente mais eficaz contra os outros pré-pubescentes de plantão.

Em casa, porém, o mesmo expediente não funcionava era tão infalível e, dentro de minha cosmologia maniqueísta em que tudo se devia à vontade combustível de Deus, agradeci aos céus quando o primeiro gato de rua fixou residência.

Seria mais preciso se dissesse gata e acrescentasse um adendo: recém-parida, sua cria alojada numa das cestas de roupas da área de serviço coberta. Pareceu estranha a indiferença de minha mãe aos animais e foi bizarro descobrir que ela os alimentava e, depois de uns poucos dias, que transferiria a tarefa a mim. Sem empecilhos, sem é-pecado-e-você-vaiqueimar- no-inferno-por-isso. Eu cumpria satisfeito a nova obrigação.

O animal adulto já havia se recuperado o bastante para desaparecer por horas a fio e o filhote, já quase desmamado, era gracioso com seus modos felinos e instintivos ainda não domesticados. Assim, ao descobrir que as pálpebras do bichinho amanheciam grudadas por uma secreção amarelada, dispus-me, entre mordidas e arranhões, a limpá-los com água corrente e paciência até que pudessem ser abertos sem dor. Nos apegamos um ao outro e com o crescimento a panterinha passou a ser bem mais importante que qualquer outro animal que tive em qualquer outro momento de minha vida.

Até, é claro, que o dito momento passou e como todos os gatos adultos suas prioridades mudaram de conforto e brincadeiras para conforto e procriação. Assim como as minhas, claro. O interesse crescente pelo que se escondia sob as saias de uniforme e shorts de ginástica das coleguinhas de escola foi só o primeiro sinal de mudança.

O contato com o gato, claro, nunca saiu de minha memória. Na verdade, recentemente manifestou-se com muita força devido a uma associação livre de idéias decorrente de meu hobby.

IV.

Há pouco mais de um ano comprei uma edição em inglês de contos e poemas de Edgar Allan Poe, meu companheiro mórbido, entre outros mais alegres, da hora do recreio.

Relendo os contos aleatoriamente, fixei-me na narrativa estranha e familiar de “The black cat”. Nela, conduzido por um narrador-personagem que fala de seu amor pelos animais e subseqüente mudança comportamental atribuída ao consumo do álcool, descobri que meu hobby de equalizar pessoas e personagens era um tanto limitado.

Quantos foram os indivíduos que passaram por grandes mudanças, extremas até, de comportamento que conheci em anos recentes? Um punhado? Dezenas? Mais, certamente muitos mais. Como, então, encontrar um que correspondesse ao narrador do conto de Poe? Eu não tinha os meios para isso e a frustração cresceu e tornou-se motivo de insônia e sonhos acordados.

A revelação veio com a percepção do corte padronizado de cabelo de meu colega de trabalho. Havia, então, um elemento comum, um elo de ligação entre todas as pessoas que deixaram convicções arraigadas de lado para adotar a imprudência suicida como novo modo de vida.

V.

No mundo literário, no cerne da mimesis, tudo é perfeito, todas as engrenagens giram sem espaço para a aleatoriedade, o mecanismo do relógio universal cartesiano se realiza em todo seu potencial.

No mundo de Poe, em particular, havia a necessidade de que o culpado fosse punido, mesmo que seu crime tivesse sido acidental. A narrativa funcionava com uma lógica interna própria, inalienável. O cadáver oculto no final de “The black cat” tornaria o crime do narrador perfeito, sem pistas, exceto que… isso não seria permitido. Se fosse, equivaleria no mundo real a ignorar a lei da gravidade sem o uso de nenhum aparato mecânico, pela simples força de vontade. O culpado comete o crime porque quer ser apanhado e, no fim, ao perceber que isso pode não acontecer, reage de modo a entregar as provas incriminadoras às autoridades.

É assim em “The black cat” e em outras narrativas do mesmo autor. No conto citado, no entanto, o gato emparedado com a esposa assassinada funciona como alarme para a polícia.

O gato era o padrão, descobri logo a seguir.

VI.

Durante as intermináveis horas de análise e consultoria contábil, costumo navegar pela rede inconseqüentemente, um recurso funcional para manter-me em dia com o mundo além dos números, borderôs, faturas e planilhas. A informação que faltava para completar o quebra-cabeças angustiante em que meu hobby se transformara chegou a mim durante a leitura de notícias num site de divulgação científica.

“O manipulador”, dizia o link em que cliquei quase por reflexo.

Assim aprendi rapidamente a respeito do Toxoplasma Gondii, o manipulador citado no cabeçalho do texto. Segundo pesquisadores da Universidade Carlos, em Praga, o toxoplasma é um parasita que, depois de infectar o hospedeiro, esconde-se do sistema imunológico no cérebro.

Não era nenhuma novidade, haja visto que se trata de um dos parasitas humanos mais comuns no mundo, já tendo infectado entre 30 e 60% da população global. A opinião médica é de que o toxoplasma é quase sempre inofensivo, com potencial para afetar apenas mulheres grávidas e pessoas com o sistema imunológico enfraquecido. Ou era isso o que se pensava… Jaroslav Flegr e seus colaboradores descobriram que roedores, os “hospedeiros intermediários” do parasita, podem ser manipulados por ele de modo a comportarem-se mais imprudentemente, tornando-se mais ativos e menos temerosos de coisas novas e até sentindo atração por urina de gatos, o que os torna mais vulneráveis a ataques felinos, exatamente o que o “manipulador” quer. Afinal, o toxoplasma precisa infectar o gato, o “hospedeiro definitivo”, para completar seu ciclo vital e espalhar seus genes.

Gatos. Mudança de comportamento. Padrão.

Prossegui a leitura. A pista encontrada não validava minha teoria, não completava o quebra-cabeças, não me fazia sentir que o salto entre literatura e realidade de que consistia meu hobby fora dado. Faltava algo ou assim pensei até descobrir que a pesquisa se estendeu de ratos para homens. Apesar do pouco incentivo evolutivo que o toxoplasma teria na manipulação de cérebros humanos, os pesquisadores pensaram em como há semelhanças entre estes e os dos roedores e deram o passo mais lógico, passando a conduzir uma série de testes com voluntários, alguns com a infecção latente e chegando a um resultado assustador: os homens infectados reproduziam um aspecto da manipulação em roedores. Eles tendiam a ser mais independentes e ousados. A pesquisa se encerrava com a inevitável coleção de números.

Flegr e equipe testaram amostras de sangue de 146 pessoas envolvidas em acidentes de automóvel, parcial ou totalmente responsáveis por eles, e de outras 446 pessoas num grupo de controle. Havia mais portadores do toxoplasma no grupo de acidentados.

A ligação óbvia com a imprudência e tempo de reação retardado dos roedores foi o que me deu o estalo. Todos os dados se alinhavam, todas as peças, finalmente, encontravam seu lugar na imagem que formavam.

O narrador de Poe teria sido infectado pelo gato preto e, por isso, inconscientemente talvez, buscou vingar-se do animal? A pergunta foi feita, o salto, dado.

VII.

“A porcentagem alta me preocupa”, eu disse enquanto trabalhava em Edna. Por algum motivo ela não respondeu. Talvez tivesse a ver com a broca da furadeira elétrica partida e no meio do percurso em direção à sua massa encefálica, não sei dizer. Os espasmos musculares iam e vinham, mas eu não sabia se devia atribuí-los a algum desequilíbrio químico do cérebro causado pelo composto de controle mental do parasita, à broca, ou às marteladas que desferia contra sua cabeça na tentativa de descobrir o manipulador escondido na matéria cinzenta.

Edna, assim como suas auxiliares Ana Cristina, Érica, Michele e Juliana, era uma das pessoas mais dadas a mudanças de comportamento que conheci. Talvez isso se devesse ao cargo que ocupava e sua inépcia em coordenar os trabalhos, usando as outras para corroborar e disseminar  mentiras que culminavam com o prejuízo moral dos funcionários comprometidos com a empresa… era o que todos diziam.

Ao investigá-la, logo depois de ter trabalhado em suas ajudantes, descobri que, como as outras, também tinha um gato. Tinha que ser a infecção. A tarefa a que decidi me dedicar depois da descoberta era mais interessante ainda que meu hobby, pois me deu um novo propósito e trabalho para a vida inteira.

Eu livraria meus iguais dos sofrimentos trazidos pela influência do parasita.

A possibilidade de ser apanhado foi uma de minhas preocupações quando resolvi levar a cabo minha missão.

Mas eu tinha o álibi perfeito.

Também possuíra um felino.


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