DOPPELGANGER

Abs Moraes

01.

-Acredita que eu esteja mentindo? Por que não posso desaparecer? Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.

                                                                                    Giovanni Papini, in “O trágico cotidiano”. (1906)

Oto parou diante do espelho e forçou um sorriso. Sua própria imagem refletida causava-lhe inquietação, pois hesitava em corresponder à expressão mantida em sua face e isso foi o início de um encadeamento de idéias que, descobriu, não conseguia evitar.Talvez algo relacionado ao já distante colapso nervoso que sofrera, a queda na biblioteca e… que mais?

 

02.

A cultura livresca em que cresceu, forçada mas não compartilhada por seu pai, poderia ser um dos motivos que o levaram ao limite…A sala adaptada para abrigar livros tivera vários papéis em sua vida e, de um modo um tanto torto, na de seu genitor. Enquanto para Oto fora o forte em que, vezes sem conta, bateu-se com índios, o labirinto através do qual espreitara ansiando deparar-se com um monstro mitológico e matá-lo a fim de receber os favores da princesa e, finalmente, o lugar onde ocultavam-se as palavras, transmissoras de conhecimento, instrumentos de homens de ciências e letras, para o pai era tão somente símbolo de status… do tipo que ele poderia ostentar à vontade sem jamais possuir realmente. O homem viera de baixo, de muito baixo e construíra uma fortuna à custa de esperteza, sagacidade, oportunismo e ossos quebrados. Seus planos para o filho, no entanto, eram outros. Queria que tivesse e fosse tudo o que jamais conseguiria ser por mais dinheiro que possuísse. A biblioteca foi seu primeiro esforço neste sentido. Marcava sua presença com uma poltrona colocada de modo estratégico no centro do ambiente, porém só a ocupava sazonalmente. Nessas ocasiões, tudo o que fazia era permanecer sentado com um dos grandes volumes encadernados no colo (O Paraíso Perdido, A Divina Comédia, Fábulas de La Fontaine ou Dom Quixote, todos ilustrados por Doré), folheando-o cuidadosamente, como se se tratasse de uma relíquia sagrada. Ali Oto decidira dedicar-se à vida jurídica e à diplomacia, reflexo imediato da influência dos autores de clássicos nacionais do século XIX.  Foi onde se instalou a idéia inicial ainda em germe de participar mais ativamente da justiça do que um advogado, juiz ou promotor faria. A vida política imaginada pelo pai era  sinônimo de estagnação para Oto, apaixonado que era pela ação desenfreada e as femmes fatales do Roman Noir.

Bibliotecas foram cenário de mais episódios na vida de Oto do que seria capaz de lembrar.Dois, no entanto, sempre saltariam em sua memória, onde quer que encontrasse estantes preenchidas por livros.

O primeiro ainda na adolescência foi decorrente da descoberta por parte de seu pai de suas futuras intenções, de seus planos discordantes dos dele com relação à carreira a seguir e resultou no que se acordou chamar familiarmente de sua queda. Havia os sentidos físico e bíblico implicados, pois após a queda seu pai distanciou-se, apartou-se do filho de modo similar ao mito criacional. Oto pecara a seus olhos e assim foi afastado de sua presença, o que implicou a disciplina pesada de um liceu para meninos nos últimos anos de sua formação básica.

Oto passou a classificar sua vida em duas fases: a.Q. e d.Q.

Foi nesse período que apercebeu-se de uma discórdia crescente em seu caráter fragmentado. Figuras arquetípicas como homem de ação e trabalhador da mente entre outros, ocupavam sua psique… um com sérios problemas em aceitar figuras de autoridade, outro calado e submisso… aparentes opostos que pensou ser capaz de conciliar voltando a seu plano original de cursar Direito na universidade.

A sala de trabalho e leitura ampla nas adjacências da biblioteca central da faculdade foi onde ocorreu o segundo quando ao final do quinto ano de curso conheceu Ana, a mulher que melhor se encaixou no padrão pré-estabelecido por ele de como deveria ser sua companheira. E ela estava tão de acordo com a idéia de Oto a seu respeito que sorriu maliciosa quando ele a chamou pela primeira vez de Ava. A atitude certa aparecia em seu andar, gestos e fala. Mas algo deu errado, algo que Oto traduziu intimamente como resultado de um truque, uma operação de ilusionismo cujo objetivo era o mesmo para um número surpreendentemente grande de jovens universitárias: casar. Esta parcela mínima do que Oto compreendia como si-mesmo concluiu que tudo o que Ava fez até então era um verniz superficial que rachou-se imediatamente após a revelação inesperada por ele e desesperada dela de uma gravidez indesejada. A troca rápida de personas não o apanhou sem prevenção depois disso.

Casou-se no sexto mês de gravidez contra a vontade do pai depois do término do curso e foi deserdado como sabia que seria. O patriarca da família teve seu sonho destroçado e em consequência disso um acidente vascular cerebral que devorou alguns anos de sua vida.

A sincronia de eventos lançou Oto num  aturdimento do qual só se recuperou quando a filha completou um ano e já era delegado de polícia há dois meses. Parte dele despertou decidida a encerrar sua vida conjugal e familiar forçada pelas circunstâncias e depois de perder uma última batalha para Ava, agarrou-se ao trabalho como a uma tábua de salvação.

Aliviava a tensão desses dias de todas as formas que conhecia com sucesso variável. Mais de uma vez pensou ter encontrado equilíbrio quando lia um bom livro, treinava sua arte marcial preferida (hábito adquirido no liceu) até que o esgotamento físico fizesse cessar a corrente contínua e opressiva de pensamentos relacionados ao trabalho, ou numa sessão de cinema em que deixava de ser protagonista e passava a ser só mais um espectador… também havia as mulheres misteriosas de uma hora,  depois da qual tudo voltava a ser como antes. Prosseguiu com a vida desse jeito: erguendo-se, trabalhando, deitando-se até que afinal encontrou o outro.

 

03.

Foi assim de modo sutil que o conceito de duplo enunciou-se no cotidiano de Oto. Alguém usara seu nome numa compra e jamais saldara a dívida. Uma fraude simples que custou mais ao credor do que ao delegado que, ao descobrir que o farsante sequer apresentara qualquer documento de identidade, processou o primeiro por danos morais, foi ressarcido por todos os seus gastos e compensado financeiramente.

O episódio foi posto de lado por Oto tão depressa por conta de seu tempo cada vez mais exíguo com plantões e horas-extras brutais que o obrigavam a um retiro involuntário do convívio social… exceto por seu treinamento marcial (que fazia acompanhado por Renato, escrivão de seu plantão e alguns dans mais avançado), livros e filmes para os quais não necessitava de companhia em absoluto e a ocasional mulher misteriosa, sua vida resumiu-se ao trabalho.

Por saber quão tumultuado era seu dia estranhou muito a reação de um suspeito detido para averiguação à sua presença na delegacia.

Passadores de classe média ficavam pouquíssimo tempo presos. Quatro dos cinco supostos “aviões” mal tiveram tempo de dormir antes que advogados aparecessem por todos os lados brandindo documentos, fornecendo álibis e a eventual propina ao juiz que sem tardar estabelecia fianças irrisórias e os liberava. Chamavam o quinto de Hugo por motivos de fundo fisiológico. Não dispunha dos mesmos recursos legais e ficou mais tempo na cela. Tempo bastante para desencadear uma série de eventos desagradáveis e evitáveis causados por sua própria estupidez.

Oto desenvolveu depois de muita prática o hábito de manter o mínimo contato possível com os detidos porque, em resumo, eles o irritavam. Não foi diferente com Hugo, ao menos antes das coisas saírem dos eixos. O responsável da noite pelas duas celas da delegacia chamou-o por causa de uma confusão em andamento.

Um dos presos, Hugo, é evidente, gritava e exigia fazer uma ligação para a mulher. A intervenção de um dos policiais de plantão só piorou a situação, porque o passador começou a afirmar que tinha sido agredido por ele e que aquilo era abuso de poder. Ao aproximar-se da cela, Oto notou que o marginal lhe era familiar mas não deu atenção a isso. Depois de um tempo todo contraventor parecia igual a seus olhos. Não notou o brilho de reconhecimento nos olhos de Hugo.

-Então?

-Tô precisano batê um fio pra dona encrenca, dotô!

-Não vai dar.

-Colé, dotô? Vai miguelá uma mixaria dessa?

-É, vou.- Em se tratando de Oto, essa era uma decisão definitiva. Uma parte de seu caráter era assim, inflexível, irredutível, incapaz de mudar de opinião mesmo que reconhecesse depois estar errado… era uma fração que preferia quebrar a arrefecer. A mesma parte que decidira pela separação, por deixar de ver a filha e que custara tantas horas insones, tanta culpa subconsciente manifestada em sonhos incompreensíveis de dor. Ainda assim, achava direito justificar-se, esclarecer sua atitude diante da sociedade e o fez várias vezes e não seria diferente agora. – O caso é que você não foi educado, garoto. Acusar um policial de agressão no meu turno não é sinal de esperteza e ambos sabemos que  isso não foi o que aconteceu, certo?

-Qué que mostre as marca?

-Não, quero que fique quietinho no seu canto e espere que o Estado designe um defensor legal. Quero que aguarde os tramites e não cause confusão na delegacia. É isso o que quero.

-É, o barato que te descolei num ajudô nada, né não?! Tu ainda tá nervoso pá caraio!

-Como é que é?

-Fala sério, dotô! Tamo em casa, tá ligado?! Num tem que fingí, não!

-Do que é que você está falando, seu…

-Pega leve, meu! Tô falano da parada! Pa-ra-da!

-Você deve estar me confundindo com outra pessoa, garoto.

-Tô não sinhô! Delega Oto, né isso?!

-É, mas…

-Sem essa! A área é tua! Num tem pra quê dizê qui num mi cunheci!

-Não sei do que está falando.

-Tu pegô meu material tem duas semana, porra! Da boa! Sem erro!

-Policial?- Oto dirigiu-se ao mesmo homem que o suspeito acusara de agressão.

-Sim, senhor?

-Leve o detido para a sala de interrogatório. Deixe-o lá. E chame o Renato, por favor.

-Sim, senhor.- E o homem sorriu com uma cumplicidade inesperada para Oto que repetiu o sorriso sem perceber, quase uma contração involuntária de seus músculos faciais.Depois disso a situação acalmou-se. Hugo voltou à detenção mais sábio e com menos dentes. Por outro lado, Oto foi apresentado a um fantasma de si mesmo, alguém que se fazia passar por ele e não fora notado até agora. Isso mudaria depressa se dependesse dele. No entanto, não pôde levantar uma lista dos suspeitos que lucrariam sujando seu nome. A relação hipotética seria grande demais e nela constariam pessoas perigosas demais, mas não suficientemente informadas para elaborar algo tão hollywoodiano.

 

04.

Oto dormia o que achava ser o sono dos justos, mas que era o dos exaustos. Praticamente desmaiara ao chegar em casa, ainda usando parte da roupa que vestiu para seu turno. O sol já nascera quando tirou os sapatos. Seu cérebro, agitado por descargas eletroquímicas similares às de um ataque epiléptico, dobrava-se sobre si mesmo num esforço de ordenar sentido no turbilhão emocional soterrado sob a persona pública do delegado.

Sua mandíbula travada num dos frequentes ataques de bruxismo foi a segunda coisa de que teve consciência ao acordar, dolorida que estava.

A primeira foi a campainha constante do telefone.Do outro lado da linha, Ava.Confuso por ser acordado quase duas horas depois de ter-se deitado, estranhou a amabilidade impressa na voz da ex-mulher. Sua lembrança mais recente de um encontro com ela terminava com a porta do apartamento batendo com força suficiente a suas costas para provocar um deslocamento de ar que agitara seus cabelos e suas roupas frouxas. Era a mesma pessoa que falava agora do outro lado da linha telefônica?

-A menina não vê a hora de vocês saírem outra vez…

-Acabei de chegar…-ele disse olhando o despertador na cabeceira da cama e notando que sua própria voz adquiria uma inflexão diferente da que costumava usar quando se via obrigado a falar com Ava. Estava quase terna, diversa da frieza formal costumeira.

-Te acordei? Desculpe! Tentei antes o número do celular que você me deu, mas só caía na caixa postal, então achei que não se importaria se eu ligasse pra sua casa… ah, Oto, ela está tão ansiosa pra te ver que dá pena…

-Não, tudo bem. Você fez certo. -Agora se sentia um pouco mais senhor de si. Ava estava dizendo que ele vira a menina? Queria gritar e perguntar quando, arrancar dela toda a informação possível, mas sabia que se o fizesse perderia qualquer chance de… era o outro, tinha certeza. O mesmo que levara a droga do marginal com quem falara há poucas horas.

-Você vem hoje? Como a gente combinou?

Havia alguma conspiração bizarra cujo objetivo ignorava. Sua ex-mulher fazia parte dela. Quem mais estaria aliado ao outro, ao que se fazia passar por ele? Só tinha um jeito de descobrir e Oto, com a maior gentileza que conseguiu reunir, perguntou:

-A que horas mesmo?-Tinha uma caneta na mão e uma idéia ou duas de como agir.

 

05.

Tornou-se lugar-comum na ficção ressaltar, em épocas diferentes, dois modos de ver o trabalho policial ou de detetive. Na época de ouro dos pulps a ação desencadeada por um assassinato ou qualquer outro tipo de crime lançava o protagonista numa montanha-russa de tiroteios, sangue e morte que só terminava na última página; nos tempos modernos, enfatizava-se o tédio dos procedimentos, a burocracia, a preservação de cenas de crimes, mas o alvo preferido eram as campanas. Não foi assim para Oto porque ele sabia de antemão o horário em que o suspeito compareceria à cena do crime. Sem pensar, automaticamente, veio-lhe o velho clichê de que o culpado sempre volta etc. e tal.Chegou 20 minutos antes da hora combinada (por quem quer que fosse que se fazia passar por ele) ao endereço que Ava ocupava com a filha, procurou um lugar de onde observar chegadas e partidas sem chamar atenção ou ser visto e pronto.

Começava a preocupar-se com um possível atraso na entrada para seu turno quando viu estacionar em frente ao prédio, apenas um par de minutos antes do estabelecido, o carro do qual saltou um homem de compleição física similar à sua… quase igual, diria um observador que não fosse Oto e soubesse não se tratar da mesma pessoa. Apesar disso o jeito como se vestia era diferente. Não no sentido do uso de roupas ou cores bizarras. Era algo subreptício, sutil. O sujeito estava arrumado, era isso. Usava o mesmo tipo de vestuário que Oto, optando por cores também neutras, pouco chamativas, mas usando o tamanho certo de calça e camisa, não números maiores que garantiriam conforto na visão do delegado. A postura e o andar o imitavam. Transmitia força e segurança quando tocou o interfone e sorriu ao ser atendido e conversar com alguém dentro do prédio. As mãos foram para dentro dos bolsos da calça como num reflexo de autodefesa ao invés de se engancharem pelos polegares no passador do cinto, marca registrada de Oto esperando.

A porta do prédio abriu-se e a menina pendurou-se imediatamente no pescoço do “pai”. A surpresa bateu-lhe no rosto ao notar Ava logo atrás dela, tentando reassumir de modo quase patético sua superfície de femme fatale. Mais surpreendente ainda foi ver que ela não se esquivou da mão estendida pelo outro para acariciar seu rosto. Ao contrário do que seu ex esperava, ela deitou a face tocada na mão grande, segurando-a com carinho onde foi posta com suas próprias, pequenas e delicadas, estreitando os olhos como costumava fazer, quando ainda eram namorados e se sentia aventureira o bastante para experimentar novas posições e sensações na cama, uma promessa muda, como Oto costumava dizer. Ele pensava a todo vapor em como podia ter certeza de enxergar tudo isso da distância que estava e só podia pensar que a conhecia bem o bastante, que dada a situação, seria assim que ela agiria. Pensou também a respeito da participação que Ava teria na conspiração: expor sua filha seria um jeito eficaz de fazê-lo agir. Mas lembrou da voz dela ao telefone e a dúvida consumiu a hipótese.

 

06.

Impôs-se uma distância determinada, calculada de modo a não ficar á vista e não perder contato visual com o outro. Após estacionar no subsolo do shopping no oposto exato onde seu duplo deixara o carro, encaminhou-se para o segundo piso, para a praça de alimentação, tentando pensar como alguém que se passava por ele agiria na tentativa de agradar sua filha. A resposta mais evidente era também a mais verdadeira e viu-se observando-os da cafeteria enquanto comiam a boa, velha e industrializada fastfood.Por um momento que alongou-se demais pensou em si mesmo como um fantasma que assombrava a vida de outro,um intruso, um bisbilhoteiro. Era uma mudança de 360º  do ponto de vista que tinha quando tomou conhecimento pela primeira vez da existência do farsante. Sentia que não deveria ser assim, que seu papel de espectador era reservado para os filmes… mas a cena que se desenrolava a poucos metros não era a de um filme? Pai e filha rindo e brincando e comendo depois de um reencontro esperado por ambos? O outro apanhou um guardanapo, sacou uma esferográfica do bolso e passou a rabiscar o papel enquanto falava animadamente com a menina. O peito de Oto pesou. Algo havia sido tirado dele…o vácuo que ficou no lugar era pequeno e indefinido mas estava lá.Perguntou-se diante da bilheteria sem precisar de muito tempo, tempo algum na verdade para saber a resposta, a que filme assistiria junto com a menina. O outro devia tê-lo estudado com minúcia maníaca para saber tão bem o que faria a seguir. E a seguir. E a seguir.Aquela teria sido a melhor tarde num deserto de tardes sem graça e em seqüência na memória de Oto se não fosse por um detalhe: não era ele quem carregava no colo sua cria sonolenta para dentro do prédio; também não era ele quem recebia um beijo caloroso de boas-vindas no rosto recém-barbeado, beijo dado por outra Ava, diferente daquela que quase machucara seu corpo ao bater a porta a suas costas. Era o outro. O outro que não era Oto.

 

07.

Mas quem?

Repassou mais uma vez a lista de suspeitos e outra e outra vez não conseguiu encontrar qualquer nome capaz de algo digno de um filme de 007: roubar parte da vida do inimigo. Quem se submeteria a uma cirurgia plástica, condicionamento físico e estudo metódico de todo seu repertório de gestos e falas? Sua vida não era a de Bond em que o absurdo nunca pára de acontecer e vilões bizarros e obcecados não medem esforços para destruir o agente inglês e são detidos somente pelo próprio e amargo fim. O outro o duplicava perfeitamente, ou melhor, refinara sua “versão”de Oto, eliminando todos os aspectos desagradáveis de seu caráter. Notou que era mais importante saber o que estava acontecendo do que chegar  a tempo do plantão para o qual já estava atrasado.Acomodou-se no banco do motorista esperando que seu imitador saísse depressa do prédio. Não foi o que aconteceu.

Escoou-se uma hora, então duas.

Pensou na promessa muda de Ava e concluiu que não era mais uma promessa. Gelou. A campana alongou-se e ele não dormira desde o telefonema recebido pela manhã. Duas horas de sono não eram suficientes para ninguém.

 

08.

A pontada aguda no pescoço foi seu despertador. Adormecera tão profundamente que seu corpo pendeu para a porta do carro, sua cabeça encostou-se ao vidro da janela e os músculos que a sustentaram durante o sono gritavam de dor pelo abuso.

Endireitou-se e massageou as vértebras da altura das clavículas até a base do crânio. Jogou a cabeça de um lado para outro fazendo diversas articulações estalar. Preparava-se para esticar o corpo fora do carro quando notou que o automóvel do outro já não estava estacionado na frente do prédio. Consultou o relógio. 22:22 hs. Dormira demais. Sem uma linha clara de ação a seguir, sem saber o que viria depois, entrou no carro e deu a partida.

 

09.

Cansaço e dor muscular derrotaram-no. Desistiu de ir à delegacia, mesmo de ligar e avisar que não iria pela primeira vez em… quanto tempo? Desde que começara a comandar o lugar, concluiu.A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi despir-se e enfiar-se sob o jorro d’água fria do chuveiro. Esperava reanimar-se e recuperar a capacidade de concentração, mas não funcionou. Jogou-se na cama só de cuecas e teve a impressão de já estar adormecido antes mesmo de atingir o colchão. Um sono tumultuado apossou-se dele. Confundia sua vida com a de outros, sua biografia fundida com a de personagens e personalidades… sua mente era o palco e os atores e o público. Viu-se perdido num dédalo infinito, segurando um barbante cuja outra ponta se perdia nas brumas que cobriam o piso do lugar. Sem saber porque virou-se e estava agora no centro do emaranhado de paredes interrompidas, semi-construídas, montadas geometricamente e familiares demais. Sentada num trono de ossos uma criatura grande e encapuzada trincava um fêmur entre os dentes, sugando o tutano. Não se surpreendeu quando olhou para a ponta do barbante que ainda trazia na mão e descobriu a extremidade oposta queimada a apenas 20 centímetros, um resto de chama ainda relutando em se deixar apagar pelo ar frio que ascendia do chão.Dirigiu-se ao monstro barulhento por falta de opções, arfando, seus passos cada vez mais lentos… os ruídos da sucção e do osso sendo partido perturbavam-no de um jeito que ficara esquecido nos recônditos de sua memória… uma infância fantasiosa que girou sobre si mesma, fossilizada e quebradiça. Entendeu diante do que (de quem?) estava e o que aconteceu a seguir.

-Você tem sido bom para sua mãe, Oto? Tem estudado e lido e se comportado como deve?- o som da voz da criatura, apesar de abafado pelo líquido espesso que lhe ocupava a boca era…

-Sim.- …seria possível? Pensando em duas frentes simultâneas a primeira resposta foi a que lhe aflorou aos lábios. Oto tentou soar firme e convincente, como o outro seria, sem certeza de sucesso.

-Acha que pode esconder o que faz de mim, seu moleque?- a coisa virou-se para ele pela primeira vez desde que chegou ao centro do labirinto, deixando que visse sua boca que cuspia palavras e suco humano… uma boca conhecida, entortada como a de uma vítima de derrame.

-Não, eu só…

-Acha que não sei sobre a puta com quem tem saído? Eu seu próprio- o horror gerado pela voz e o fato de o monstro ter-se levantado projetando uma grande sombra sobre Oto fez com que ele piscasse os olhos e ao abri-los…10….não havia mais labirinto nem gigante encapuzado. Nada restou do sonho. Sentou-se na cama e embora mantivesse a impressão de que tudo o que ocorrera em seu interior não ocupasse mais que minutos, descobriu que a manhã avançava em direção à tarde.Um ruído vindo do banheiro chamou sua atenção. Teve dificuldades para levantar-se e caminhar até lá. Não comia nada há quanto tempo? 18 horas? Sentia-se cansado mas não tinha fome apesar do jejum não planejado. Abriu a porta e deparou-se com um ambiente vazio. Creme e lâmina de barbear novos, intocados esperavam na pia.Curvou-se sobre a superfície de cerâmica e olhou a depressão e o ralo e a escuridão a que a água conduziria os pelos estirpados de sua face. Ergueu a vista e assustou-se com o reflexo no espelho do armarinho. Pensou tratar-se do outro, do que o substituíra, tomara seu lugar junto à filha e agora deitava com Ava…Um sorriso forçado que não conseguia identificar como seu vinha da imagem refletida. Tentou imaginar o que o outro sentia, pensava mas não conseguiu, falhou. A campainha do telefone quebrou o transe. Pensou na recorrência daquilo, desejou que fosse Ava e que ela falasse com doçura como da última vez e não percebeu que seu reflexo voltou-se mais rápido. A decisão de seus movimentos o abandonara com suas forças e ele chegou ao telefone um pouco depois que os três toques de costume, sem conseguir adivinhar quem seria como fizera tantas vezes antes. Apanhando o receptor notou que sua voz também enfraquecera ao dizer alô?

-Oto?- reconheceu a voz do escrivão.

-Renato?- falou num tom monocórdio, o vácuo em seu peito crescendo.

-Cê tá bem, cara? Tá gripado?

-Acho que sim… deve ser uma virose dessas. É sobre ontem?

-Isso aí. Não precisa se preocupar que a gente já tô com tudo acertado pra hoje. Vai ser no Chinês mesmo.

-No Chinês?

-Cê pediu pra ser no Chinês, ô Oto!

-Eu?

-Cara, cê deve tá mau! Já esqueceu, porra? Pra mim já tava esquisito cê pedir pra fazer confraternização do pessoal do plantão com família e tudo mais, agora esquecer…

-Não, não esqueci. É só o cansaço, sabe?

-Tá. Então anota aí o horário, zé mané.

Apesar de não ter pedido nada para Renato pelo motivo simples de não ter ido trabalhar e em conseqüência não o ter visto, Oto pegou a caneta e anotou. A familiaridade do ato de escrever ajudou-o a reencontrar seu centro e a idéia de ver-se cara à cara com quem quer que fosse o impostor era um estimulante de que precisava. Oto descobriria, desmascararia o inimigo que não se satisfez em invadir sua vida pessoal e agora metia-se em seu trabalho. Fazer a barba não melhorou seu aspecto abatido. Comeu mas os alimentos não pararam em seu estômago. Adormeceu. Dessa vez o sono foi vazio de sonhos e de monstros.

 

11.

Conseguiu chegar ao Chinês com antecedência de minutos e escolher uma mesa afastada na penumbra. Felicitou-se em silêncio por sua realização e aguardou. Descobriu que conseguia reter líquidos e a idéia de manter-se hidratado ajudou-o a esperar, assim como um maço de cigarros que comprou sem intenção de fumar e funcionou como um amuleto. Ele apanhava os cilindros e girava-os entre os dedos, levava-os à boca e repetia toda a performance até que os tivesse reduzido a frangalhos que amontoava no cinzeiro.Renato e a namorada chegaram acompanhados pelo pessoal do plantão, suas mulheres, maridos e acompanhantes. O escrivão passou pelo menos duas vezes pelo delegado internado no véu de sombras sem notá-lo. Oto ficou contente mais uma vez pela escolha estratégica da mesa. Tinha o sétimo cigarro entre os dedos ainda em perfeitas condições quando o outro entrou no restaurante. Aproximou-se do grupo demonstrando uma alegria de que Oto era incapaz. O motivo para isso foi revelado a seguir com a aparição inesperada de sua companhia.

-Senhoras, arrã, senhoritas e senhores… sua atenção, por favor! Quero lhes apresentar minha ex-ex-mulher, Ava!- Deus, pensou Oto, como ele conseguia fazer aquilo soar natural! E a voz! Não tivera oportunidade de ouvir a voz do sujeito ainda e era a sua própria! Como podia ser possível? O horror maior foi perceber que já tinha acendido o cigarro e fumava-o com desespero… o motivo foi a esperança apagada não pelo discurso do farsante, mas pelo sorriso perturbador de Ava… um sorriso que exprimia a mais pura e sincera felicidade. A doçura desejada por ele era agora entregue ao inimigo.

-Ah, pára com isso, Oto!

 

Tudo que fez a partir de então foi observar o desenrolar da reunião, fumar e beber água.Oto, o outro Oto, contou piadas, comeu, bebeu sussurrou no ouvido de Ava e discretamente deslizou sua mão para debaixo da mesa mais de uma vez, provocando reações expressas no rosto de Ava que cobriram vários espectros, do choque ao prazer. Depois disso as mãos da mulher também fizeram pequenas excursões ocultas pela toalha com resultados similares no homem. Iluminado pela brasa do cigarro o homem cuja vida foi roubada sentia-se mais fraco, perdia gradualmente o senso de identidade e planejava erguer-se mais cedo do que tarde, caminhar em direção à mesa em que ele, o outro ele, estava gozando com sua ex-mulher e colegas de serviço um momento de descontração e esvaziar o pente de sua Glock extra-oficial no corpo que era seu de um jeito ou de outro.Enquanto acariciava o cabo da automática e tecia tramas cada vez mais eficazes, ao menos em sua imaginação, que permitiriam a ele descobrir a identidade do responsável por tudo aquilo e culminariam com a eliminação de seu adversário, ocorreu-lhe uma questão ainda não cogitada: seria homicídio ou suicídio? Não chegou a encontrar resposta porque Oto levantou-se da mesa e, com graça, sussurrou algo no ouvido de Ava, bebeu um resto de cerveja do copo e anunciou com um sorriso no rosto algo ao grupo à sua frente ininteligível para o homem na sombra, mas que provocou uma explosão de gargalhadas, impropérios e indignação. Enquanto se desvencilhava da cadeira, Oto soltou mais uma movida pelo álcool que fez com que Ava sorrisse e corasse em medidas diferentes. O observador na penumbra disse para si mesmo ainda consegue fazer seus truques? O vazio pleno pulsou em seu interior.  O homem sem vida encolheu-se na cadeira e emitiu um ruído baixo e constante, como se todo o ar de seus pulmões fosse expirado de uma vez. Viu Oto afastar-se trôpego da mesa, dando um tchauzinho manhoso para Ava e um arrepio, a única sensação que lhe restou, percorreu sua coluna vertebral quando viu-o aproximar-se da mesa que ocupava nas sombras. Eletricidade estática crepitou em seus ouvidos no momento em que Oto, que agora não era mais o outro, o farsante, o inimigo, o adversário, ao dirigir-se para o banheiro, parou à sua frente e olhou-o cheio de piedade.

-Acho que não preciso pedir licença pra sentar, certo?- a pergunta era tão retórica que antes de terminar de fazê-la já estava acomodado. Havia divertimento e um pouco de nostalgia em sua voz.

-Não.- a voz sussurrante da sombra respondeu.

-Já consegue entender o que está acontecendo?- cortesia e pedantismo simultâneos dominavam a atitude de Oto aos olhos do homem sem vida.

-Consigo.-o esforço para falar era maior do que qualquer outro feito em toda sua vida. Ou seria melhor dizer na dele?

-Minha. Sim. Se você consegue é porque eu consigo.- Oto disse, no mesmo tom.

-Agora é minha vida. E, cara, deixa eu te dizer: isso é que é vida!

Concentrando-se como podia, o espectro sussurrante, enfraquecido e tomado pela certeza de que nada mais seria como antes, tentou alcançar sua arma e balbuciou… um som informe, de desespero puro.

-Deus! Só queria conseguir entender como pude ser tão patético por tanto tempo! Você veio armado? Estava pronto pra me matar? Não consegue ver o que está fazendo? Deixe que lhe conte uma história… talvez ajude a colocar uma perspectiva diferente nos acontecimentos recentes. Outro dia levei minha… nossa filha pra passear. Depois de comermos e enquanto esperávamos o horário do filme que assistimos, fiz um desenho num guardanapo pra ela. Desenhei a loba mítica Roma amamentando Rômulo e Remo, os fundadores da cidade que duplicou e divulgou o nome da mãe adotiva e selvagem de ambos. Expliquei que Roma é uma palavra que lida ao contrário torna-se Amor e que por isso a escolhi pra ser o nome dela, da menina, porque ela era fruto do meu amor por Ana. Sabe o que ela fez? Sorriu! Foi o sorriso mais bonito que já vi e me alimentou, me deu mais força do que qualquer treinamento marcial ou decisão inflexível que, bem, você tomou… Não que só tenha feito coisas erradas. Você é útil e muito bom em muitas coisas pra que eu cometa o erro de classificá-lo como um estorvo. Mas algumas das suas decisões não foram acertadas, sabe? Abandonar Ana por se sentir culpado pela morte de seu, desculpe, de nosso pai foi um erro tremendo. Tudo ficou pior por causa da sua opção pelo isolamento. “Só trabalho sem diversão faz de Jack um bobão”, certo? Somos legião, pequenino. Não podemos deixar que só um aspecto de nossa totalidade predomine. Sua paranóia de um “outro” é imaginária… talvez abastecida pela leitura de Willian Wilson, O médico e o monstro e Borges… somos eternos, o Eu-luz, o Guia pessoal, a Natureza perfeita… o que você ignorou… “Aquele que conhece a si mesmo conhece o seu Senhor”… com o que fizemos, com o que deixamos que testemunhasse através de seus olhos cobertos por escamas, estamos devolvendo a plenitude que nossa vida deveria ter desde sempre. Este último estágio torna tudo mais claro… ou confuso. Você já deve ter notado que a diferença entre uma coisa e outra diminui a uma velocidade extraordinária… logo não vai mais existir e as escamas cairão. Então não existirá mais doppelganger, pequeno espectro e você voltará a fazer parte do todo ao qual pertenceu um dia.

Os dedos dele relaxaram. Não havia arma em seu cinto, nem coldre. Compreendeu que era assim porque não fora ele quem a trouxe e sabia exatamente onde estava. Não conseguiu emitir mais nenhum som e contentou-se em olhar demoradamente nos olhos de seu… não havia nome que lhe ocorresse para definir a singularidade multifacetada que o observava…da qual era apenas… um reflexo? Então nada. Vazio. Ficou sentado ainda por alguns momentos olhando a penumbra e tentando lembrar porque parara ali diante de uma cadeira vazia nas sombras com a bexiga tão cheia e Ana esperando por ele. A filha já devia estar dormindo e seria agradável deitar-se despreocupado com a mulher depois de dispensar a babá.

“Todos os caminhos levam a Roma.”


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