09
nov
11

06. Adeus, minha adorada

O roteiro escapou de meus dedos adormecidos e o som de papel, talvez mais pesado do que deveria, talvez por estar encharcado de sangue (onírico ou não), me arrancou da letargia e pude ouvir a voz de Simão, meu pai, grunhindo um xingamento qualquer, um flash inesperado da infância de que eu não sentia a menor nostalgia. “Mão furada”, “Já morreu” ou algo do tipo. O importante era fazer-me sentir inadequado, indesejado, inapropriado para ser o filho legítimo do Grande Mago.

Omar olhava pra mim com a condescendência que só mesmo o “Criador” poderia demonstrar. Diferente do que certos círculos teológicos propalam, Deus não se negou a Onisciência a fim de preservar o livre arbítrio da humanidade. Ele soube que eu sabia assim que pisquei os olhos e saí do cochilo-com-gatilho-mnemônico e da influência protetora do Instrumento da Morte. Éramos só nós novamente na réplica da casinha do quadrinhista morto.

“Isso é bem mais do que combinamos, Yadalbaoth.”

“Interessante, Lúcio, que você demonstre qualquer pudor em eliminar escumalha como Filipe.”

“Olha, o cara já não tinha sido punido o bastante? Séculos de reencarnações até queimar todo o carma ruim e, do nada, ele volta à estaca zero? Que mal o sujeito tinha feito nesta encarnação?”

“…”

“Além disso, a combinação não era eu me tornar seu novo Azrael. Não sou seu anjo da morte. Não quero ser só isso.”

“Sabe, Lúcio, o acordo era simples. Prestar serviços, usufruir das amenidades que um amigo influente pode proporcionar.”

“Claro que você não fez questão de deixar isso claro. Evidente que toda aquela conversa de que devolver a vida de Penélope era algo que você fez porque quis era mentira.”

Esperei que ele absorvesse o que falei e segurei a respiração. Ele era onisciente, onipotente e onipresente. O tempo não tinha significado pra Yada. Tudo que fez poderia ser desfeito de modo simples e rápido, porque, estando em todos os lugares e tempos ele poderia simplesmente deixar de fazer algo e seria como se nunca tivesse feito pra começo de conversa. Eu não podia blefar, claro, pois ele perceberia. Portanto menti. E ele percebeu que o pior que poderia fazer pra me punir não era cancelar a vida de Penélope, mas afastá-la de mim, fazê-la esquecer-me, apagar seu amor ou o que quer que ela sentisse por mim.

“Truque. Pois bem, Lúcio. Ela vai viver. Você já sabe o que vai acontecer, não? Não é preciso ser onisciente para saber.”

Eu sabia. Não queria ouvir mais. Precisei reunir toda minha força de vontade pra não cair de joelhos e dizer que voltava atrás, que mataria quem quer que fosse em seu nome pra manter Penélope em minha vida.

“No entanto… não pense que acabou, Lúcio. Você ainda me deve e vai trabalhar pra saudar essa dívida.”

“Te devia minha vida. Filipe por mim. Não mato mais em seu nome.”

“Mas vai fazer outros serviços. Não hoje nem amanhã. Quando for necessário. Quando eu quiser.”

A porta se fechou atrás de mim e sabia que, dessa vez, não tinha melhor metáfora que essa apesar de ser tão clichê: uma porta que se fecha. Meu deus ex-machina particular? Não mais. O amor de minha vida? Idem.

Era adeus.

Mas ela continuaria viva.

06
out
11

05. Despertar

‘Sair do roteiro’ é uma expressão que costuma ser usada menos literalmente do que o que experimentei ao término da história. Ao invés de retornar ao ponto de partida, ao momento e lugar em que comecei a leitura, fui acordar dentro do mesmo cenário de sonho citado no começo deste relato: a cozinha e seu equipamento, o faqueiro falante com o acréscimo, desta vez,  de uma grande quantidade de sangue. A maior faca do jogo disse “Não se preocupe, Lúcio, ninguém foi ferido na produção deste sonho… ninguém que importe”.

Deslizei minha mão por seu cabo e senti-a como uma extensão viva de meu braço. A faca simboliza sabedoria, lembrei, associando livremente o que sabia a respeito do naipe de espadas do baralho comum e do tarot com o método utilizado por Salomão para resolver a disputa de duas mulheres que clamavam a maternidade de uma só criança.

“Santa Joana dos Matadouros, Virgem dos Assassinos…”

Nomes têm poder. A faca anônima assumiu sua verdadeira identidade: a lâmina tornou-se negra; o cabo revelou-se esculpido em osso, branco. O instrumento do Anjo da Morte mostrou-se, ele próprio algo assustador, profano e sexy.

“Muito bem, querido, você lembrou. Quando despertar deste momento de lucidez tente fazer o mesmo, reter a informação que te entrego agora.”

Então eu soube das verdadeiras intenções de Yaldabaoth ao ajudar-me, melhor, ao levar-me a fazer uso do Instrumento do Anjo que, por uma razão que me escapou naquele momento, quis me fazer ciente do papel que cabia a mim nos planos do demiurgo.

25
jan
11

04. Nas páginas

Podia ver uma forma humana atada como um cordeiro pronto pra ser imolado a meus pés, com todo material necessário pra esse tipo de rito já ali, montado, só esperando uma fagulha pra entrar em ignição.. Eu estava sentado em uma cadeira e, como não tinha controle algum sobre minhas falas e ações, me vi repetindo o ritual que sempre faço ao necessitar de foco e força.

Risquei o fósforo na lateral da caixa e o ergui, aceso, até a ponta de meu cigarro sagrado. Inalei nicotina, alcatrão e uma porrada de outras substâncias, demais até pra enumerar, algumas nem conhecidas pela ciência, já que o tabaco foi abençoado pelo Filho e tudo mais. A fumaça começou a agir em meu organismo, moléculas de nicotina ligando-se aos neurônios velhos de guerra, ativando meu sistema de recompensa.

Era um serviço sujo mas ainda podia me sentir bem comigo mesmo. Um tipo de justiça divina, no final das contas. Traguei meu cigarro miraculoso, cruzei as pernas e disparei:

“Sabe, Filipe, pra Jacques de Molay o fogo sinalizou o fim. Pra você será um recomeço. Falando em Jacques – cê não adora o som desse nome? – os sabujos da Inquisição eram foda, não?

“Queimá-lo em fogo lento até não sobrar coisa alguma além de cinzas não foi zelo demais? Sem contar os outros milhares de templários, claro. Pra que tudo isso?

“Poder, certo? Às vezes não tem como evitar chamar as coisas pelo nome que têm.

“O meu? Garanto que não sou exatamente uma coisa, mas se acha importante me chama de Lúcio. Vai ter que servir pra você.

“Só pra refrescar sua memória e me assegurar de que cê saiba por quê tá aqui e entenda o que vem a seguir:

“De Molay era o Grão-Mestre da Ordem do Templo. Seus membros são lembrados até hoje como Templários… rárárá, óbvio, certo?

“Quê? Nunca ouviu falar? Não vai ao cinema? Não lê? Não assiste ao Discovery Channel?

“Uma lástima, Filipe… você é um ser humano lamentável.

“De qualquer jeito, a Ordem tinha um poderio militar, financeiro e religioso que cresceu durante as cruzadas de reconquista dos assim chamados ‘territórios santos’ que estavam em poder dos muçulmanos.

“Isso incluía o Templo de Salomão, que deu nome à Ordem. Às vezes me pego pensando no que Hiram Abiff diria se soubesse da bagunça que você fez na França, velho.

“O poderio dos meninos de saiote, como já insinuei, cresceu e eles passaram a ser vistos como uma ameaça pelas pessoas erradas.

“Você e seu criado, Bertrand Goth, por exemplo, já ostentando o nome papal Clemente V, conspiraram pra derrubá-los. A escolha do nome foi mais uma ironia? Vocês acharam que passaria despercebido?

“Não importa, aliás, não precisaram de grande inspiração pra realizar seus objetivos. Bastou alimentarem os rumores já existentes que implicavam a Ordem… práticas não muito cristãs, pelo menos não naquele momento histórico. Feitiçaria, sodomia, idolatria… faz lembrar um pouco da técnica de demonização utilizada pelo ministro da propaganda do tio Adolph, não? Clemente foi seu Goebbels ou você pensou em tudo sozinho?

“Com a França individada até as orelhas, você não hesitou em matar dois coelhos com uma só paulada. Sem templários o risco de insurreição organizada contra um rei fraco diminuía e, claro, você confiscaria o tesouro da Ordem que, à essa altura, era riquíssima.

“Sem Clemente você estaria perdido. Sem o apoio da ‘santa igreja’ e da inquisição, seu plano redundaria  em nada. Por isso o pequeno arcebispo de Bordéus precisou chegar ao trono pontifício mais cedo.

“Vim pra lembrar-lhe dessas e de outras coisas, Filipe. Que você não contava, por exemplo, com atitudes diferentes da sua por parte de outros soberanos do Ocidente.

“Eles protegeram a Ordem com o truque mais velho do mundo, renomeando-a. Só que Jacques já tinha queimado, ele e outros milhares de seus irmãos. Aos sobreviventes só restava vingança.”

À essa altura, o cigarro tinha se apagado, sido devolvido à sua caixa e restaurado à forma original. O timing era perfeito. Risquei outro fósforo, acendi-o. Além de ficar sentado numa cadeira, fumar e entregar um discurso, só precisava fazer mais uma coisa por Omar. Mantive o fósforo aceso enquanto prosseguia com minha ladainha.

“As cinzas de De Molay foram recolhidas pelo cavaleiro Aumont em 19 de março de 1313. Com elas, Aumont fez o cimento com o qual construiria algo que ocuparia o vácuo deixado pela Ordem: a franco-maçonaria.

“Isso nos traz ao motivo pelo qual você está aqui hoje:

“Vingança.”

A chama que queimara o fósforo até sua metade, lambeu a ponta dos meus dedos e soltei-o. O fogo atingiu o fio de combustível no chão que funcionaria como um rastilho de pólvora e acenderia a madeira sobre a qual o corpo amarrado e amordaçado de Filipe, agora, se debatia.

“Você é a encarnação mais recente de Filipe, O Belo, e também seu último descendente. Memória celular, filogenética é a justificativa científica pra reencarnação, só que sem o mesmo romance do conceito místico.

“Cientistas não considerariam que você passou por centenas de encarnações até hoje e perderiam o que este momento tem de mais hilário:

“Esta é a sua última, o último degrau que você galgaria pro Nirvana, o Paraíso. Durante sete séculos você purgou os pecados cometidos em nome da ganância e do medo e agora estaria limpo e seguro pra vida eterna. Karma esgotado. Nada a saldar.

“Exceto que o tempo desta vida ainda não terminou e, portanto, você ainda deve, a balança ainda pende negativamente pra você. Por isso fui enviado, pra adiar o que seria inevitável.

“Como ter certeza que em sua próxima vida você não será um terrorista, um estuprador ou coisa pior? Como ter certeza de que sua agonia não será prolongada um pouco mais? Meu empregador pede que lhe diga que tudo será arranjado pra que aconteça dessa forma.

“‘Lilia pedibus destrue’, destruir os lírios com os pés, tornou-se o lema dos herdeiros da Ordem. O antigo você conhece. Não?

“‘Igni naturae renovatur integrae’, a natureza é completamente renovada pelo fogo.

“O lírio, Filipe, é o símbolo bíblico da beleza. Você ainda se considera ‘O Belo’?

“Não precisa responder.Tá na cara.

“Afinal o círculo de Jacques se fechou e a vingança prometida foi concretizada… o seu, Filipe, recomeça agora, como já tinha sido dito.

“Última coisa: quando acusou a Ordem de feitiçaria… bom, foi só um meio-certo. Eles eram adoradores de uma entidade sobrenatural, só que não era o diabo, tampouco um diabo. Era Yaldabaoth, o Demiurgo, a totalidade, se você preferir assim, e não um Baphomet… um símbolo da totalidade.”

17
jan
11

03. Roteiro

“Quero te usar como personagem numa hq nova.”, ele disse, mas vindo dele as implicações iam muito além do simples “usar seu nome, sua atitude, sua aparência”. Onipotência, certo?

“Sei”, consegui articular, “E o que isso significa exatamente?”

“Por quê você não lê o roteiro e descobre?”, soltou, me passando um punhado de folhas grampeadas.

Com palavras e mais palavras digitadas em caixa alta na descrição de painéis e em baixa nas falas do personagem principal. Na verdade a coisa toda não passava de um monólogo que, supostamente, seria dito por minha versão de papel.

O título: A CONTINUIDADE DO FOGO, por Omar Espírito Santo.

“‘Quebrando as espadas, os templários fizeram punhais; e as pás de pedreiro proscritas eram usadas na maçonaria dos túmulos.’ Histoire de la Magie, do bom e velho Eliphas? Isso é, o quê, epígrafe? É só o roteiro de uma história em quadrinhos mesmo ou tem mais aqui do que pode ser percebido a olho nu?”, perguntei, e Omar/Yada deu um sorrisinho enigmático. “Claro, pergunta idiota pra se fazer a alguém que disse ‘que haja luz e a luz se fez’, certo? Dá pra sacar aonde isso vai levar de longe.”

“Um serviço. Um daqueles que te disse que gostaria que realizasse por mim. Tudo que precisa fazer é dizer as palavras. O resto vai acontecer sem esforço algum de sua parte.”

“Sei do que cê tá falando… Por quê você mesmo não as diz, Omar?”

“Lúcio, Lúcio, Lúcio… você não faz ideia do quanto me faz lembrar do seu quase homônimo. Tanta curiosidade levou-o a contestar-me e, depois, a rebelar-se. O serviço… bom, é só um pouquinho sujo, sabe? Uma pendência milenar. Encontrei o culpado e quero retribuir. Só isso.”

“Eles eram seus? O supra-sumo da cristandade, os monges guerreiros idealizados até o cu fazer bico eram sua criação?”

“A que Templo você acha que o título que escolheram pra si mesmos se referia?”

Subentendidos, autoreferência… Talvez Yada estivesse levando o papel de Omar um pouco mais longe do que deveria. Toda essa coisa pós-moderna do seu discurso me incomodava, claro, mas era difícil pensar em algo nele que não tivesse o mesmo efeito em mim. Poderoso demais, imprevisível demais… Tentei conter minha curiosidade. Fui bem sucedido por, sei lá, dez ou quinze minutos, e comecei a ler.

Imediatamente meu mundo tornou-se bidimensional, preto, branco.

Que loucura.

07
jan
11

02. Disciplina

Algumas vezes o jeito mais rápido de ir aonde se é necessário não consiste em andar entre momentos ou pegar um táxi. Por isso pus os pés no calçamento de pedra nua com o firme propósito de andar no aqui e agora, sentir a dureza do chão sob meus pés e, como consequência, acreditar que estava ancorado na realidade, ou pelo menos, em uma realidade, sem ser levado por qualquer pessoa ao meu destino. Era uma atitude simples e necessária antes de encarar Omar ou Yada (ainda não me acostumei com como devo chamá-lo). O sujeito continuava sendo uma das criaturas mais assustadoras com que já cruzei mesmo usando a aparência de bom velhinho criador de histórias em quadrinhos.

Interessante que ao abraçar minha sugestão e assumir a aparência de Omar, Yada assimilou quase tudo que tornava o homem quem ele era e fazia questão de que sua personificação fosse perfeita. Não eram só os detalhes que diziam respeito a corte de cabelo, roupas, desodorante, comida ou bebida preferidas. Yada também mudou-se pra mesma vizinhança e cumpria ritualmente as rotinas que Omar manteve em seus últimos anos. Até pensou em confeccionar cópias da esposa do desenhista e de seu filho mas o convenci do contrário.

Já era mais que trabalhoso transformar a presença de um cidadão assassinado em algo aceitável por parte dos vizinhos (e a equipe toda rebolou muito pra fazer isso acontecer sem usar qualquer tipo de controle mental, segundo instruções do próprio Yada) e seria um pesadelo logístico providenciar algo semelhante pro construto da esposa… embora o filho não tivesse morrido, também consideramos difícil justificar sua presença.

Claro que, com as portas fechadas, Omar fazia o que bem entendia. Uma de suas diversões favoritas era criar e habitar vários corpos ao mesmo tempo e gostava particularmente de fazê-lo com trios. Às vezes me via lidando com Omar, a mulher e o filho, sua alusão à santíssima trindade que tanto desprezava, enquanto ouvia a voz do demiurgo saindo das bocas de toda a família… era estranho e incômodo.

O que ele tinha planejado pra mim, no entanto, podia ultrapassar os limites do que considero tolerável. A disciplina a que ele se referia era a de fazer histórias em quadrinhos. Como disse antes, o sujeito estava imbuído do espírito de simular perfeitamente, mas não lhe bastava só copiar as habilidades do morto cuja identidade adotou usando sua onipotência. Pra ser Omar, Yada decidiu que teria de aprender a desenhar e escrever exatamente como seu modelo fazia.

Então, muito simples pra ele, decidiu usar sua onipotência  para viver todas as experiências que Omar tivera e o formaram, o que implicava viagem no tempo (“Uma ilusão. Elaborada e perfeitamente executada – não poderia esperar menos de mim mesmo – mas uma ilusão”, diria com a cara mais lavada) e algumas outras trapaças só possíveis pra alguém como ele. Às vezes Yada podia dizer coisas interessantes, como “Por quê todos vocês são fascinados com desenho nos primeiros 4 ou 5 anos de vida e a grande maioria simplesmente o abandona depois? O que faz com que só uns poucos continuem?”; em outras, podia ser só críptico, o que, acho, combinava muito mais com a personalidade registrada no Velho Testamento. “Talvez os dentes de leite expliquem isso um pouco.”, soltava, sem qualquer razão aparente. Descobri depois que Omar, por mais velho que estivesse, ainda tinha dois de sua primeira dentição na época em que morreu e Yada, óbvio, também imitou-o nisso.

30
dez
10

A continuidade do fogo

01. Mensagem, aparição, sexo

Em sonho. A revelação veio a mim como a São João na Ilha de Pátmos ou a Lucas na praia de onde antes se via Peniel. Apesar disso, meu cenário onírico era diferente. Uma cozinha ou atelier culinário em que se podia encontrar geladeira com freezer, fogão e balcão com pia e dezenas de outras ferramentas do ofício de chef… panelas, pratos e talheres arrumados em gavetas, prateleiras e portas embutidas. Papel de parede estampado com marretas e cravos.

A mensagem foi entregue por um faqueiro.

Quase lembrei ao acordar. Uma advertência. A voz feminina, sonolenta, que parecia sussurrar entre lençóis “Ele vai usá-lo novamente, Lúcio, vai usá-lo para matar, querido, como antes…”

Algum motivo especial pras palavras virem dali? O que facas simbolizam mesmo? Um aviso desse tipo precisa ser levado a sério, ainda mais quando um conjunto inox de lâminas se preocupa em dá-lo.

Deus escrevia meu destino agora. Ou um deus. Ignorava a categoria adequada em que Yaldabaoth se enquadrava – até eu cedo à necessidade humana de rotular – e, também, que minha afiliação tornara-se algo definido não pela dívida que tinha com o demiurgo por devolver Penélope ao mundo dos vivos.

Era outra coisa.

O despertar foi diferente do de costume. Ao invés de passar pelo purgatório corriqueiro entre o sono e a vigília, só abri os olhos, parecia não ter dormido. Apavorante. Uma vida inteira acordando de um jeito e, de repente, algo muda. Nada que pudesse identificar de cara, só uma coisinha sutil, uma sinapse que ainda não existia, que talvez tivesse sido criada durante o sono ou que esteva ali desde sempre, inativa, esperando pela corrente eletroquímica certa para funcionar.

Sorri. Nada com que me preocupar, pensei. Tudo vai bem. Esta sensação quase beatífica foi ativada por meu olfato, que identificou o cheiro de café fresco sendo coado e de proteína fritando na chapa.

Penélope veio durante à noite. Lembrei de, ao chegar em casa (o loft que montei no meu armazém), encontrá-la dormindo, enrolada em um cobertor que tinha meu cheiro (ou seria fedor?) mesmo não estando tão frio. Sentei na cama, observei-a ressonando de leve como fiz tantas outras vezes e sussurrei um breve “Valeu, Yada” porque, sim, tinha valido e naquele momento não importava que preço teria que pagar.

Ao contrário do que imaginei que aconteceria, Penélope não desapareceu de minha vida assim que se viu vivendo de forma independente. Sempre que podia (e isso costumava acontecer nos finais de semana) ela aparecia pra visitas surpresa, espontâneas, algo que lhe parecia perfeitamente natural, mas que pra mim era totalmente inédito, quase tão inédito quanto acordar de vez.

Então o frigir dos ovos (esse fraseado meio que denuncia há quanto tempo ando pelo mundo, mas, porra!, quem deveria se importar com esses detalhes não se importa, então…) me tirou da recapitulação útil e senti a vibração do estômago roncando. A coisa pareceu descontrolada, tive a impressão de que Penélope ouviu do lugar que costumo chamar de cozinha o movimento de minhas tripas famintas.

“A gente tem que alimentar esse alien, Lúcio, ou sabe deus o que ele pode fazer com sua caixa torácica.”

Gracinha. Piada com cultura pop. Penélope é “in” até não poder mais.

Consegui cambalear até ela, que esgrimia a espátula com a mesma destreza de um estudante shao-lin e quase me cegou com sua arma improvisada. Tentei roubar um beijo de bom dia, mas ela me explicou o procedimento necessário pra garantir qualquer troca de fluídos, significando que eu deveria fazer a higiene bucal antes de qualquer contato entre nossas respectivas mucosas.

O que pra mim estava bem. Talvez a sensação de que algo tinha morrido dentro de minha boca enquanto eu dormia não fosse só uma sensação. As abluções podem entreter tanto quanto qualquer outra atividade nesse ramo. Tudo é cercado de mistérios e a gente nunca sabe com quem (ou “o quê”… “quem” não se aplica a um monte de, arrã, “coisas” com que lido no dia-a-dia) vai dar de cara em momentos que podem ser bastante constrangedores.

Felizmente não tinha sentado no grande altar de porcelana quando a manifestação aconteceu. Só esvaziando a bexiga. Tá bom, sei, detalhes demais… o jorro inicial e meu déficit de atenção costumeiro ao me concentrar em aliviar a pressão em minha bexiga me fizeram perder as palavras iniciais do oráculo. “…preciso te ver, Lúcio. Fiz progressos na disciplina. Imediatamente ou, pelo menos, o quanto antes.”

Ver a cara de Omar Espírito Santo deformada por um jorro de urina e falando comigo sabendo que o sujeito tava morto não trouxe qualquer alento. Não podia brigar com Yada por causa disso porque ele só seguiu uma sugestão que dei num momento em que me faltou clareza.

Lavei o rosto, escovei os dentes e fui me juntar a Penélope pro café da manhã. A menina me fazia sair de mim mesmo como nenhuma outra mulher conseguiu antes. Num momento pensava em que porra Yada-Omar queria de mim, no seguinte só conseguia pensar na boca e no corpo de Penélope, em como sexo matutino era estimulante e, logo depois, que talvez não tivesse sido tão boa ideia comer aqueles ovos e partir pra uma atividade física que, dependendo da parceira, pode demandar muita energia.

Pós-coito, me meti no chuveiro e enquanto esfregava shampoo no cabelo percebi as feições de Omar repetidas milhares de vezes nas gotas d’água que caiam no meu corpo. Privacidade? Quem precisa dessa merda, certo?

“Já entendi, Omar. Deixa só eu terminar isso aqui que tou saindo.”

E ele, piedosamente, me deixou em paz.

Penélope ainda tava na cama quando saí. Dei um beijo demorado nela, disse que precisava resolver uma coisinha fora e voltava pra entretê-la no máximo até o final da tarde. Ela fez charminho (taí um troço que marmanjo nenhum jamais vai conseguir igualar quando feito por uma mulher bonita), virou de bruços (decúbito ventral?) me oferecendo uma visão do paraíso carnal que tava deixando pra trás e soltou um “Então tá, vai logo.” que partiu meu coração.

Sendo Omar quem era eu não podia só ignorar seu ‘convite’ e continuar em casa. O sujeito teve bilhões de anos pra aprender, criar ou disseminar as maneiras mais constrangedoras possíveis pra levar uma pessoa a fazer exatamente o que ele queria. Manifestar-se no vaso sanitário e no chuveiro nem eram as mais originais e/ou assustadoras. Experimente ser engolido por um monstro marinho, por exemplo. Ou ser achacado por um arbusto em chamas. Ou sair no braço com um anjo.

12
nov
10

05. Razão

Contar histórias, lhe disseram certa vez (ou lera em algum lugar, não tinha certeza), tecer ficções a respeito de si, é uma forma de escapar da armadilha do ego, de evitar tornar-se prisioneiro de si mesmo.

A vida, em seu caso, era um exercício de indefinição.

Suas certezas, se é que as havia, jamais seriam absolutas.

Sua percepção era algo de que desconfiava.

Contava-se histórias também a respeito dos outros, histórias que ajudavam a mapear causas e consequências, as motivações que, pensava, levavam as pessoas a agir como agiam (ou agem, não tinha certeza, também, de qual seria o tempo verbal adequado para aquela oração).

Buscava razão quando tudo que existia em sua experiência era instinto. Anotações sobre anotações a respeito de como a natureza animal suplantava a racional, de como, ao sentirem-se ameaçadas, as pessoas costumavam agredir as outras ou, mais simples, fugir do conflito.

Luta ou fuga.

Perfeitamente animal.

Evidente que isso não lhe servia como justificativa pra coisa alguma.

Era impossível, por mais que quisesse, mimetizar a vida só com palavras. Era algo tão enorme, tão inabarcável, tão irredutível…

Talvez, pensou, fosse melhor reduzir as vírgulas, aumentar a velocidade da prosa.

05
nov
10

04. Interlúdio

Como imaginou, escrever sobre sua percepção dos desafetos que atravancavam a vida cotidiana e despertavam uma ira que julgava justa, estava ajudando.

Os problemas pareciam menores postos assim, em palavras, reduzindo sentimentos com os quais tinha dificuldade de lidar a proporções aceitáveis, com as quais podia viver facilmente sem deixar-se soterrar.

O estresse havia diminuído.

No entanto, diferente do que previu, seu roman à clef não se parecia muito com um romance, pelo menos não com aqueles que lhe eram familiares.

02
nov
10

03. Rotunda

O nome foi imortalizado no cinema por Rita Hayworth, uma mulher de beleza incomparável. Quem atribui-o a menina deve ter imaginado que, por alguma operação mágica, pelo menos a graça e o glamour da estrela ou da personagem por ela interpretada seriam parte dos atrativos da pequena. Talvez em algum momento alguém a tenha achado desejável, provavelmente na adolescência, quando praticamente todos são atraentes para alguém. A exoftalmia e o estrabismo não chegavam a torná-la repelente então.

Os anos que a tornaram mulher e posteriormente dotaram-na da constituição de um bujão de gás, os cabelos mal tingidos com raízes brancas sempre expostas e uma personalidade repulsiva e autoritária, no entanto, eliminaram qualquer chance de que o fenômeno da adolescência pudesse repetir-se na idade adulta.

Tudo o que conseguiu, os que pôde agregar a seu redor, foram pessoas que temiam as consequências de rejeitá-la, algumas tão más ou piores do que ela. A ilusão de poder dava-lhe algo em que se fiar para manter esses escassos amigos por perto.

Não durou.

A mania substituiu a ilusão.

A psique naufragou bem antes das crises seguidas de hipertensão, causada pela ausência de qualquer dieta e consumo de condimentos em proporções industriais.

Ninguém compareceu ao enterro. Nem por temor, nem por respeito, nem por amizade.

31
out
10

02. Paralisada

Ela não cede, continua resistindo. Isso é insuportável. Praticamente todos se curvam, aderem ou não se posicionam. Não ela. Parece que pôs para si como missão tornar minha vida um inferno, demonstrar que sou incapaz de fazer qualquer coisa de forma competente, descompromissada, sem ter em vista levar algum tipo de vantagem… e também que uso de meios excusos pra atingir meus objetivos.

Talvez esteja certa. As pessoas cedem ao ouvir minha voz, aceitam uma autoridade que, de fato, não sei se tenho. É tudo encenação. Jamais admitiria isso em público, mas não sei o que estou fazendo em 99% do tempo.

Aceito servir de fachada, de testa de ferro para o projeto de uma colega, assino-o como se fosse meu com o objetivo de desafiá-la, de demonstrar que sou capaz de fazer mais e melhor, de ir mais longe do que ela. A decepção é inevitável porque minha colega, como eu, não sabe o que está fazendo e, suspeito, às vezes, sequer o que está dizendo 100% do tempo. Eu com certeza não sei do que ela tanto fala. Pra mim é ininteligível.

Então eis o que planejei pra abalar a confiança dela… é uma estratégia antiga, dividir para conquistar. Foi o que aconteceu quando minha xará, a de Tróia, serviu como pomo da discórdia entre cidades que já eram rivais mas precisavam de um motivo para irem às últimas consequências. Uso alguém que lhe importa. Mino a confiança dessa pessoa. Torço fatos, demonstro que, se não fizer o que peço, será prejudicada.

A mocinha é ótima, age exatamente como espero, trai sua mentora.

Que, claro, não se faz de rogada e a descarta de imediato.

Fica evidente que sou a causadora da situação.

A pequena Páris é uma covarde. Ao invés de assumir sua responsabilidade, joga tudo em meu colo. Será que acreditou mesmo que seria indispensável pra qualquer uma de nós? Pensou que nos confrontaríamos diretamente por sua causa?

Ela perdeu a utilidade. Tento descobrir quem será a substituta. Abordo-as nos corredores, sorrio, questiono.

Meu novo instrumento responde, sorri de volta, me dá atenção.

Em seguida procura um adulto responsável  e diz que uma das supervisoras a assediou. Sou forçada a responder a um processo e exonerada. Qualquer noção de impropriedade que ainda tenho se esvai gradualmente. Cedo à minha verdadeira natureza.

Não consigo descobrir qual foi meu primeiro erro. Sinto-me incapaz, paralisada.




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